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16 DE DEZEMBRO DE 1963 429

O exemplo de Antígona, que, contra as ordens o ameaças de Creonte, por suas mãos sepultou o irmão falecido, constitui, sem dúvida, um elevado símbolo do amor fraterno com que a literatura clássica para sempre enriqueceu as tradições da humanidade Mós a fala, tão modesta como firme, com que a piedosa donzela justifica o seu acto não é menos grandiosa e solene afirmação da crença na existência daquelas leis, «promulgadas pelos deuses imortais», «que não estão escritas e que ninguém pode apagar» - aquelas «leis que não são de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos e que ninguém poderá jamais dizer quando nasceram».
E é verdadeiramente impressionante, na verdade, que esta tomada de consciência do direito natural, brotada no pensamento de um povo pagão, tenha recaído precisamente no dever de honrar e respeitar o corpo dos mortos.
Tão natural é o dever de sepultar os mortos que as leis nem sequer o afirmam expressamente e apenas se preocupam em regular as condições a que deve submeter--se a inumação. Não ignoram, todavia, aquele dever, nem desconhecem o significado ético ligado às honras prestadas aos mortos, como resulta do facto de a lei penal não só punir as injúrias contra eles dirigidas, mas também incriminar a violação das sepulturas e o vilipêndio do cadáver (Código Penal, artigos 417.º e 247.º)
Infelizmente não se pode deixar de registar a circunstância de a morte provocar, em muitos casos, o simples sentimento de pavor e de, em outros casos, se manifestar alguma tendência para se negar qualquer valor ético ao corpo dos mortos, e se chegarem a praticar contra o cadáver actos de verdadeiro desprezo ou violência.
Estas atitudes podem explicar-se como indícios de materialismo, mas não deixam também de, no fundo, exprimir a perturbação dos homens perante o mistério da morte e do destino a que, por efeito dela, são votados os seres humanos e o seu corpo em especial.

7. POSIÇÃO DA DOUTRINA JURÍDICA - Os indícios de contradição e de incongruência que encontramos nas atitudes correntes acerca do cadáver não deixam de ter correspondência, em certa medida, na posição tomada pela doutrina jurídica a respeito dos problemas por este suscitados. Na verdade, são manifestas as hesitações e divergências dos jurisconsultos, seja no que se refere ao cadáver em si mesmo, seja no tocante às relações que a natureza e o regime dele podem apresentar com problemas jurídicos mais amplos, respeitantes à construção jurídica da personalidade e dos seus direitos estruturais.
Em geral, os autores reduzem o problema da natureza jurídica do cadáver à questão de saber se ele deve qualificar-se como coisa e, na hipótese afirmativa, qual é a categoria de coisas em que pode enquadrar-se.
Não falta quem de solução negativa à primeira destas questões O Dr. Cunha Gonçalves, por exemplo, entende que o cadáver não é coisa porquanto se, pela morte, s. . B personalidade fica extinta, o cadáver, como resíduo ou invólucro dela, é ainda objecto de respeito, sendo punido quem o desacatar (Código Penal, artigo 247.º e parágrafos), e certo é que uma simples coisa não tem de ser respeitada (12)»
E já se julgou entre nós que e os restos mortais de qualquer indivíduo juridicamente não podem ter-se como coisas para os tornar susceptíveis de apropriação e propriedade, nos termos dos artigos 866.º, 479.º e 2167.º
do Código Civil, mas sim como pessoa, embora destituída de vida, e, quando menos, relíquias dela»(13)
Mais generalizada é, todavia, a opinião de que o cadáver constitui uma coisa. Partindo-se da divisão rígida de toda a realidade exterior ao direito em pessoas e coisas, deduzida de postulados puramente formais e logicistas, entende-se que o cadáver, não sendo pessoa, é forçosamente coisa, era esta, por exemplo, a argumentação do Dias Ferreira, quando afirmava que «o cadáver está indubitavelmente compreendido na categoria das coisas, por ser coisa tudo o que carece de personalidade (artigo 369.º)» (14)
Àquilo em que geralmente se manifesta divergência entre os autores é, apenas, a questão de saber se o cadáver é coisa no comércio ou coisa fora do comércio
Esta última é a solução defendida, por exemplo, por Dias Ferreira(15), por Fadda e Bensa(16), por Degni(17) e por De Cupis(18), e também sustentada pela Procuradoria-Geral da República (19).
Outros autores há que, pelo contrário, sustentam que o cadáver é coisa no comércio, pelo menos em termos mitigados Assim, Ferrara sustenta que em geral o cadáver é coisa extra commercrum, mas, por vontade do testador ou disposição da lei, pode ser objecto de direitos e tornar-se portanto coisa no comércio (20) Opiniões semelhantes defendem o Doutor Cabral de Moncada (21) e J Lopez Berenguer (22)

8. APROXIMAÇÃO DO PROBLEMA DOS DIREITOS RELATIVO À PERSONALIDADE -A generalidade da doutrina jurídica inclina-se, por conseguinte, paia a solução de qualificar o cadáver como coisa.
Não é difícil, todavia, ao compulsar-se qualquer obra jurídica sobre o assunto, verificar-se que a natureza assim atribuída ao cadáver não traduz com rigor o pensamento profundo dos autores Para se ver que essa é a realidade basta considerar a circunstância de quase sempre os problemas relacionados com o cadáver sei em versados a propósito dos chamados direitos de personalidade.
E compreende-se bem que assim seja.
Antes de mais, e por muito tecnicistas que os autores se confessem ou se mostrem no pormenor de suas construções, eles não podem deixar de ser sensíveis às tradições e às crenças respeitantes ao cadáver, e essas são todas no sentido, como só viu, de atribuir a este significado ético e de o aproximar de realidades de carácter moral e religioso, insusceptíveis de caberem na mera ideia de coisa
Por outra parte, os próprios problemas jurídicos que, em geral, se suscitam acerca do cadáver apresentam estreitas ligações relacionadas com questões genéricas relativas à personalidade.

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(12) Tratado ao Direito Civil, Coimbra Editora, 1920, Coimbra, vol. I, p 304 Cf vol. III, p. 55.
(13) Sentença de 81 de Agosto do 1874, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, vol vil, p. 845.
(14) DIAS Porreira, Código Civil Português Anotado, 2.º ed , Imprensa da Universidade, 1894, Coimbra, vol. i, p. 6.
(15) Obra e lugar citados.
(16) Nota ao § 40 do Diritto delle Pandette, de Windscheid, Unione Tipografico-Editnce, Turim, 1902, vol. i, p. 618
(17) Degni, Le Persone Pinche, Unione Tipografico-Editnce, Turim, 1989, p 199
(18) De Cupis, I Diritti della Pononalità, Dott. A. Giuffrè - Editore, Milão, 1950, p 77
(19) Citado parecer de 27 de Novembro de 1952, in Condição Jurídica do Cadáver, p 9.
(20) Diritti delle Persone e di Famiglia, Casa Editrice Dott Eugênio Jovens, Nápoles, 1941, p 104
(21) Lições de Direito Civil, 8.º ed , Atlântida, Coimbra, 1969, vol. II, p 88.
(22) 0b cit. p 205