10 DE DEZEMBRO DE 1963 425
a Regulamento Geral dos Serviços Clínicos do Hospital Real de S. José e Anexos, de 10 de Setembro de 1901, permite, no artigo 3.º, que os indivíduos falecidos nas enfermarias sejam autopsiados pelo respectivo director na sala de dissecações da Escola Médico-Cirúrgica ou do Hospital e o Decreto de 24 de Dezembro do mesmo ano criou naquele Hospital um laboratório geral de analises clínicas destinado a esclarecer os problemas de diagnóstico e outros do investigação clinica que lhe fossem apresentados pelos médicos e cirurgiões dos serviços do referido Hospital (artigo 1.º) e que compreendia várias secções, das quais a primeira era destinada a análises anátomo-patológicas (artigo 2.º, n.º 1) Os artigos 305.º, § único, e 307.º do Regulamento Geral dos Serviços Clínicos do Hospital Real de S. José e Anexos, de 24 de Dezembro de 1901, revelam, porém, que essas autópsias não ao podem efectuar se houver reclamação por parte das famílias.
Assim, o § único do artigo 305.º deste último regulamento estabelece:
Deve ser respeitado o direito das famílias ou dos amigos dos falecidos a fazerem-lhes enterro separado do que é regulamentar noa hospitais, e a fazerem amortalhar os seus mortos com os fatos que, como doentes, trouxeram para o hospital ou com outros que tragam de fora nessa ocasião, mas, para que possam usufruir tal regalia, é necessário que o participem antes de findas as 24 horas e se sujeitem ao cumprimento de quaisquer processos de higiene que o estado do cadáver ou a qualidade da doença aconselhar às autoridades hospitalares a quem compete determiná-los.
E, por seu lado, o artigo 307.º preceitua
A saída dos cadáveres da casa de observações para a sala de dissecações da Escola Médico-Cirúrgica, quer sejam reclamados para estudo, quer para autópsias à ordem dos directores das enfermarias, não poderá realizar-se sem conhecimento da repartição fiscal, que deve autorizar o guarda a permiti-la ou a recusa-la, depois de verificar se a respeito de tais cadáveres há alguma reclamação das famílias para enterro ou se sobre eles tem de haver procedimento judicial.
Por efeito destas disposições a autópsia não é permitida, pois, quando o cadáver tiver sido reclamado para enterramento separado do regulamentar dos hospitais A mesma doutrina se poderá ver consagrada na Portaria n.º 40, de 22 de Agosto de 1918.
Aí se estabelece que o Governo, pelos Ministérios do Interior, Justiça e Instrução, providencie para que fiquem a disposição das faculdades de Medicina, para seus estudos, os cadáveres dos falecidos nos hospitais, asilos e casas de assistência pública quando, dentro das doze horas seguintes ao falecimento, não sejam reclamados pelas famílias para procederem ao seu enterramento e determina ainda que os cadáveres, enquanto se encontrem à disposição das Faculdades, podem ser reclamados pela família, mas serão entregues apenas depois de findos os estudos convenientes, salvo se houver interesse para a ciência na conservação deles na posse das Faculdades
A Procuradoria-Geral da República, no seu douto parecer n º 59/59, de O de Junho de 1960 (Boletim do Ministério da Justiça n.º 105, de Abril de 1961, pp 401 e sega ), depois de opinar que o Regulamento das Escolas Médico-Cirúrgicas de 1840 não esclarece devidamente se as autópsias clínicas são ou não obrigatórias para as famílias, defende a doutrina de que o Regulamento de 24 de Dezembro de 1901 e a citada Portaria n.º 40 devem considerar-se decisivos para o efeito de se entender que essas autópsias só são permitidas quando os cadáveres não forem reclamados pelas famílias.
Não noa parece, todavia, e não obstante a proficiência com que o assunto se acha debatido naquele douto parecer, que em rigor jurídico seja aquela a boa doutrina
Na verdade, o Decreto de 18 de Agosto de 1910, acima citado, á perfeitamente explícito ao revelar a obrigatoriedade das autópsias em causa, já porque, tendo esse diploma em vista «rectificar e aditar as disposições reguladoras dos serviços de autópsias, de tanta importância para o ensino pleno da clínica e habilitação dos futuros médicos» (como se diz no respectivo preâmbulo), não pode atribuir-se outro significado a afirmação de que se mantêm em vigor os artigos 101.º e 102.º do regulamento de 1840, já porque aquela orientação se deduz clara e explicitamente, como se viu, dos citados artigos 2.º e 8.º desse diploma.
Contra estas disposições terminantes não pode prevalecer uma simples portaria, nem um decreto, aliás de âmbito restrito ao Hospital de S. José e anexos, de data muito anterior àquele diploma de 1910, e cujos efeitos, para mais, este tinha a manifesta intenção de remediar.
E também não parece aceitável o argumento, invocado pela Procuradoria-Geral, de que o artigo 2.º daquele Decreto de 18 de Agosto de 1910, ao prever a execução de autópsias no caso. de cadáveres reclamados para enterro, se poderia entender como referente a autópsias exigidas por autoridades judiciais, e que o artigo 8.º do mesmo diploma, ao estabelecer que a solicitação da família de que se abrevie ou omita a autópsia deve ser atendida, conciliando-se ato onde for possível com as imposições da investigação cientifica e do aprendizado médico, se poderia entender como tendo em vista os casos em que a família faz aquela pedido som reclamar o cadáver para enterramento.
Nada há, na letra ou no espírito do Decreto de 18 de Agosto de 1910, que autorize esta interpretação restritiva, tanto mais quanto a intenção expressa nesse diploma é, manifestamente, obviar à falta de cadáveres
Parece-nos ser outra, muito diversa da proposta pela Procuradoria-Geral, a forma de conciliar este diploma e as demais disposições de que extraímos a regra de as autópsias efectuadas pelas Faculdades de Medicina não dependerem da vontade das famílias com o Regulamento do Hospital de S. José, de 1901, e com a Portaria n.º 40, de 1918 aquela legislação, que primeiramente apontámos, tem por objecto directamente as autópsias promovidas pelas Faculdades de Medicina e que incidem nos cadáveres de indivíduos falecidos nos seus serviços clínicos, enquanto o regulamento de 1901 e a Portaria n.º 40 se referem aos cadáveres de pessoas falecidas em outros estabelecimentos - hospitais não universitários e, na Portaria n.º 40, também os das que tiverem morrido em asilos ou outros estabelecimentos de assistência - e tanto para o efeito de autópsias promovidas pelas Faculdades, como para o das ordenadas pelos directores das enfermarias A possibilidade de oposição da família só se encontra prevista para estes últimos casos, ou seja, em resumo, o das autópsias de cadáveres de indivíduos falecidos fora dos serviços clínicos das Faculdades de Medicina.
É certo que o Regulamento de 24 de Dezembro de 1901 evidencia alguma confusão entre os serviços do Hospital de S. José e os da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, facto susceptível de esbater aquela distinção por nós enun-