16 DE DEZEMBRO DE 1963 427
f) Quer a inumação, quer as autópsias e de tecidos ou vísceras, só podem efectuar-se, em regra, depois de decorridas 24 horas, contadas a partir da morte ou, no caso de autópsias efectuadas nos Institutos de Medicina Legal, contadas desde a entrada dos cadáveres no respectivo necrotério.
3. ESPECIALIDADES DA MATÉRIA DO PROJECTO EM EXAME - De quanto só acaba de expor pode concluir-se que o projecto de decreto-lei que é objecto deste parecer está muito longe de pretender introduzir um princípio de utilização dos cadáveres que repugne à orientação das leis vigentes.
Se se atendesse apenas aos fins de investigação científica, poderia supor-se, num juízo precipitado, que o assunto contemplado no projecto não merecia sequer regulamentação em diploma autónomo.
É certo que o intuito principal do diploma projectado é o de permitir colheitas de tecidos ou órgãos com fins terapêuticos. Mas também neste aspecto se deve chamar a atenção para o facto de, já na legislação vigente, foi permitida a colheita de vísceras para fins de interesse geral e se admite até a autópsia num caso em que ela, directamente, é determinada por interesse particular - o caso da autópsia de indivíduos falecidos em virtude de doenças profissionais.
E, considerando-se que a terapêutica por meio de enxertos de tecidos ou órgãos alheios pode não aproveitar peças cadavéricas, mas sim elementos extraídos do corpo de homem vivo ou de irracionais, poderia perguntar-se, inclusivamente, se não seria melhor integrar os fins de investigação científica e de ensino na legislação vigente, e criar-se um regime especial para todos os casos de terapêutica por meio de enxertos
Estas dúvidas podem servir para pôr em relevo a circunstância de, como se deixa dito, o projecto aqui analisado não se afastar sensivelmente das directrizes gerais das leis em vigor acerca do cadáver. Tomadas em si mesmas, contudo, essas dúvidas são desprovidas de fundamento.
Na verdade, mesmo admitindo-se que o projecto considera o fim de investigação cientifica com autonomia (o que adiante se terá de esclarecer), não pode negar-se ao diploma projectado a necessária unidade e homogeneidade.
E que, como logo de começo se acentuou, o diploma em causa considera as colheitas de tecidos e órgãos que, para os fins nele previstos, se hajam de efectuai no corpo de pessoas recém-falecidas.
Esta especialidade importa problemas importantes, quer de ordem técnica, quer de ordem jurídica, moral e religiosa No primeiro aspecto, avulta o problema da verificação da morte, pois as colheitas aqui consideradas têm de ser realizadas antes de se verificar a alteração dos tecidos por efeito de autólise, e, conseguintemente, quando maior receio pode haver de a morte ser aparento. Do segundo ponto de vista suscitam-se variados problemas relacionados com o respeito devido ao cadáver e aos sentimentos de piedade dos familiares, e respeitantes ainda ao próprio culto religioso, aspectos que tornam necessárias certas precauções técnico-jurídicas, estabelecidas em favor das pessoas investidas em direitos ou deveres relacionados com o cadáver.
Por outras palavras- a especialidade deste projecto não reside em ele, contra o espírito da legislação e dos costumes correntes, admitir o aproveitamento dos corpos de pessoas falecidas para fins de utilidade pública ou particular, mas sim na circunstância, que lhe dá homogeneidade, de esse aproveitamento haver de sei feito em lapso de tempo muito limitado, facto que é origem de problemas de ordem vária e com indiscutível melindre
4. DIREITO COMPARADO - A descoberta do novo aproveitamento de cadáveres, relativo a técnica dos enxertos de tecidos ou órgãos humanos, tem levado, em diversos países, a publicação do leis semelhantes ao decreto-lei cujo projecto nos compete examinar.
Conhecemos os diplomas seguintes, indicados por ordem cronológica.
a) França- Decreto n.º 47-2057, de 20 de Outubro de 1947, que, para efeitos da doutrina do artigo 42.º do decreto provisòriamente aplicável de 17 de Abril de 1943, introduziu uma nova alínea no artigo 27.º do decreto provisoriamente aplicável de 81 de Dezembro de 1941 (5), já anteriormente tinha sido introduzida uma alteração semelhante e com igual fim no mesmo artigo 27.º pelo Decreto n.º 47-1902, de 26 de Setembro de 1947 (6),
b) Espanha Lei de 18 de Dezembro de 1950 (7),
c) Inglaterra Decreto de 26 de Julho de 1952, denominado «decreto-lei dos enxertos de córnea, 1952» e um regulamento sobre a doação do cadáver para investigações médicas (8),
d) Itália Lei de 3 de Abril de 1957, n.º 235 (9)
Todos os diplomas citados prevêem a colheita de tecidos ou órgãos do corpo de pessoas recém-falecidas. Mas o decreto inglês, de 26 de Julho de 1952, só se refere à colheita de córneas, e a lei italiana de 3 de Abril de 1957 à da córnea, do globo ocular ou de outras partes do corpo especificadas em regulamento.
O fim para que, em geral, se permite esta colheita, é o fim terapêutico. O decreto francês de 20 de Outubro de 1947, porém, refere-se também às necessidades científicas.
No respeitante ao local da colheita, estas leis mandam-na efectuar, geralmente, em institutos universitários e hospitais constantes de relação oficial, o decreto italiano permite a colheita no local da morte, quando o falecido a haja autorizado.
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(5) In Recued Sirey, 1948, Lois Annotees, p 1148, col 2.ª
Sobre este decreto pode ver-se André Decocq, Essas dúne Théorie Générale des Droits sur la Personne, 1960, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, pp 207-208.
(6) In Recued Sirey, 1948, Lois Annotées, p 1177, col. 1.ª
(7) Transcrita por Castán Tobefias, «Los derechos de la personalidad», na Revista General de Legislacion y Jurisprudencia, 1952, p 42, nota n.º 109. Sobre esta lei, além do citado estudo de Castán Toberius, podem ver-se J Latour Brotóns, «El cuerpo humano como objecto de derecho», na mesma Revista, 1955, pp 166 e segs, e J Loprz Berenguer, «Naturaleza y Contenido del Derecho sobre el Proprio Cuerpo», in Anales de la Universidadde Murcia, 1950-1951, pp 195 e segs, especialmente pp 209 e segs.
(8) Conhecemos estes textos em tradução fornecida pelo Ministério da Saúde e Assistência.
(9) In Lex/Legislazione italiana/Raccolta Cronologica, ano XLIII, n.º 12, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torineso, p 663. Sobre este diploma vejam-se De cupis, in Novissimo Digesto Italiano, dirigido por Antonio Azaro e Ernesto Eula, Unione Tipografico-Editrice. Torinese, vocábulo «cadavere (Diritto sul)», no vol. II, p. 657, e Michele Pesant, in Enciclopedia del Diritto, Gruffrè Editore, vocábulo «cadavere (Diritto Civile)»,vol v,p 769. Sobre a proposta que deu origem a este diploma e respectiva discussão veja-se G. A. Belloni, «I morta per la salvezza dei vivi», in Giustisia Penale, vol. LVI (1951), parte prima, cols 408 e segs.