748 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 72
O cristão sustenta que o trabalho constitui medida do homem, visto que, traduzindo-se de certo modo em participação na obra criadora, reflecte os atributos divinos e por ele ó verdadeiramente à imagem de Deus, ou, por melhores palavras, "é causa relativa, consciente, inteligente, voluntária, à imagem da causa absoluta" 2.
Outros, buscando a transcendência aquém do sobrenatural, como que divinizam o homo faber, erigem em finalidade o "trabalho pelo trabalho" 3 e na escalada triunfal da produção vêem justificação bastante e prazer compensador de espantosos sacrifícios.
Outros ainda, contados por milhares, não identificam na origem remota do esforço que é exigido, e só pode ter corço objectivo, terra-a-terra, a sustentação da vida e o acréscimo eventual da sua comodidade, mais do que um fatalismo cego, cuja tirania, não obstante, apetece iludir e vale a pena contrariar.
Como quer que se filosofe quando disso é questão, para muitos, no que lhes toca em concreto, o pão de cada dia não constituiu sempre o salário exclusivo do trabalho nem o suor do rosto seu único preço. Porque houve o interesse mais ou menos estimulante que o acompanha e o prazer de ordem superior que não raro suscita: compensações que o trabalho rende ao espírito criador, ao sentido de realização pessoal, ao gosto de servir, ao simples respeito da própria dignidade.
Todavia, para além daquilo com que os recursos tecnológicos, o desenvolvimento das relações humanas e a mais perfeita disciplina legal contribuam para lhe minorar o incómodo e para lhe valorizar os aspectos agradáveis, e sem embargo de todos poderem atingir, se não a consciência da sua nobreza, pelo menos um estado de razoável aceitação da sua inevitabilidade, o trabalho continua a revestir-se de carácter penoso, a implicar um mínimo de sacrifício, a subentender a quota-parte de dor que o marca, na sentença bíblica, como estigma do pecado.
O esforço físico que desgasta e deprime, a tensão peculiar à concentração intelectual, o desencanto das tarefas rotineiras e obscuras, a frustração resultante da aptidão insuficiente ou da diligência ineficaz são companheiros de que jamais alguém se consegue desembaraçai: por completo. Acontece, outrossim, que, à medida que estas contrariedades são atenuadas ou cessam de apoquentar, outras se vão insinuando com subtileza. Ao recorrer aos exemplos do passado, vê-se que o triunfo espectacular e universal da máquina, cujo advento muitos saudaram como princípio do fim de todos os esforços violentos e degradantes, coincidiu paradoxalmente com algumas das páginas mais negras da história do trabalho humano. Fazendo o inventário das angústias dos contemporâneos, encontra-se o novo suplício da sua indisponibilidade, em face da absorção material e psicológica pelos deveres profissionais, que não permite aos mais evoluídos corresponder as crescentes solicitações dos vários centros de interesse que o nosso tempo faculta, nem consente, por vezes, aos mais sobrecarregados autêntica vida pessoal e de ambiente familiar.
Talvez que a experiência desengane da hipótese de um trabalho imune de dificuldades, convertido em prazer no reino feliz da Utopia. E, no entanto, sabê-las certas e renascidas constitui o más aliciante desafio à capacidade de imaginação e de luta para as remover.
De resto, como problema de governo e objecto de ordenamento jurídico, o trabalho interessa muito especialmente enquanto supõe constrangimentos e envolve o risco de converter-se em ocasião de injustiça.
2. O carácter penoso do trabalho é influenciado, entre outros 4, pelos seguintes factores: as condições jurídicas económicas, técnicas e ambienciais de prestação, a sua natureza, a intensidade e o ritmo, a duração.
Por agora, é em função da duração do trabalho que importa considerar os demais.
Principie-se por estabelecer como axioma que o trabalho forçado, independentemente do nível habitual da sua duração efectiva, sempre teria parecido mais longo do que, em identidade de circunstâncias, o trabalho livre. Da mesma maneira, o trabalhador subordinado se inclinará muito mais a contar as horas de serviço que lhe pedem do que o trabalhador independente ou de profissão liberal a enfadar-se com o horário que para o cumprimento das suas obrigações adoptou. Daí que, em sentido técnico-jurídico, horário de trabalho seja apenas o estabelecido por uma entidade patronal em relação a trabalhadores que lhe estão vinculados contratualmente.
Também o nível salarial e o da duração do trabalho podam, na prática e no direito, andar interligados. As perspectivas de melhor retribuição justificam, comummentte, es acréscimos eventuais ao período normal de trabalho e, segundo boa parte das legislações, representam condição necessária da isenção do regime de horário. É fácil fundamentá-lo em termos de justiça relativa, mas entende-se igualmente do ponto de vista psicológico: o trabalhador bem pago está em regra mais predisposto a não deitar contes ao tempo que lhe prendem os deveres profissionais.
Menos custosas para o homem deviam ser, e são em princípio, as tarefas que os instrumentos e os meios técnicos adequados facilitem ou por si executem. Foi a esperança que se alicerçou na evidência do progresso da submissão das forças da Natureza, graças à mecanização, nomeadamente à automação. De facto, teoricamente, não seria inconcebível atingir-se um ponto em que, inclusive, "todo o trabalho físico e intelectual, mesmo o de invenção, fosse substituído peia acção da máquina, perfeita, limitando-se o homem a colher os resultados de engrenagens objectivas bem montadas" 5.
Então inverter-se-iam os dados do problema e teria de perguntar-se se "a luta contra as servidões da natureza não é factor capital do equilíbrio psicológico e mental" e se "a dureza e os riscos do esforço contra as ameaças e as resistências do real são ou não são indispensáveis a estabilidade do homem" 6.
Mas não se trata disso por agora, no conjunto da actividade produtiva. Trata-se de recordar que a chamada revolução técnica, que trouxe a evidente libertação de sujeições tradicionais, do mesmo passo trazia na sua face oculta o germe de novas formas de servidão, com o enfado e tormento das operações em série e atomisticas, interminavelmente repetidas e tristemente impessoais 7.
2 Id., ib., fl. 21.
3 Como já foi lùcidamente observado, a própria dor do trabalho assinala ao homem que o trabalho não é o seu fim, não esgota as Buas aspirações.
4 Incluídos, o estado de espírito ocasional, a saúde e a doença a vocação e a preparação profissional do trabalhador.
5 Emile Rideau, "Homme-au-travail et home-au-loisir", in Revue de l'action populaire, 155. Fevereiro de 1962, fl. 149.
6 Ob. e loc. cit.
7 "O trabalho tomou-se menos actividade motora e mais actividade senório-intelectual. Por consequência, se a máquina desobriga o indivíduo de pesadas fadigas, pede-lhe um maior dispêndio de energia psiquica", Francisco Vittto, in A Economia ao Serviço do Homem (tradução portuguesa da Junta de Acção Social), fls. 256-257.