752 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 72
Deve acentuar-se, entre parênteses, que em relação a muitos trabalhadores, cuja residência está bastante afastada do local do trabalho, ou cujo acesso a este é por qualquer razão embaraçoso, o tempo de serviço e o tempo disponível não constituem as únicas parcelas de uma soma de vinte e quatro horas. Entre um e outro intercala-se um. tempo neutro, não já de trabalho e ainda não disponível, que utilizando a linguagem, corrente no direito infortunístico poderíamos denominar in itinere. O facto dá ao trabalhador a desagradável sensação da liquidez do período que lhe pertenço e condu-lo a aspirar, por contrapartida, ao encurtamento do horário. Porque a duração do trajecto se cifra, por vezes, em hora e meia e duas horas diárias 23, compreende-se que, na perspectiva do trabalhador, esta incidência de ordem prática deva por força convidar a correcções aos dados teóricos do problema do "dia laborai".
Como quer que seja, e encerrado o parêntese, é necessário conceder que, sem embargo de na sociedade, contemporânea muitos homens não disporem ainda do benefício mínimo de horário certo 23, a exigência de obter tempo livre, cada vez mais tempo livre, comanda agora as aspirações a progressiva redução da duração do trabalho.
Vem aí finalmente a civilização do ócio? Já nasceu pelo menos na visão da nova utopia.
Quarenta mil horas de trabalho ao longo de toda a vida é quanto Fouraslié promete para o limiar do século XXI.
Um generoso "inventário do futuro"...
9. A insuficiência do trabalho para a realização do homem e da "sua vocação a uma existência de plenitude infinita" tem sido apontada como a causa profunda impulsionadora da luta pela conquista da sua disponibilidade.
No estudo, muito penetrante, a que já se fez referência e que significativamente intitulou "Homme-au-travail, homme-au-loisir", Émile Rideau, dando o que chama a sua resposta à dialéctica do trabalho e do lazer, afirma que o trabalho produtivo é a subestrutura, & aproximação e a condição de outros valores. "Por outros termos", diz, "a actividade laboriosa tem por fim o lazer, mas o lazer activo e voluntário, também laborioso mas existencial". A diferença reside em que o trabalho útil tem de sujeitar-se à servidão dos "projectos concretos e dos resultados precisos", enquanto o outro "rasga horizontes sobre um conjunto de actividades indeterminadas".
Não está, pois, escrito que o tempo livre a que o homem aspira, que o homem conquista 24, deva ser como que um tempo vazio, mas antes um tempo vago ou desocupado, a fim de que "o trabalho útil... sem perder o seu lugar insubstituível... ceda a vez ao conhecimento desinteressado, às actividades lúdicas, à arte, à vida de relação", ião serviço dos valores supremos, e assim, se possível, "toda a existência se enobreça e espiritualize" 25.
Daqui se infere que o tempo livre pelo tempo livre não constitui objectivo racional. Pouco adianta sustentar que o reconhecimento de mais um direito, o direito à preguiça como dizem alguns, contém a obrigação de não regatear ao homem a legitimidade de nada fazer no tempo, ou com o tempo, que afinal é seu... Porque a questão não se põe agora em termos de discussão de direitos, mas de cautela de interesses vitais.
Ora, uma vez dado ao repouso do corpo e do espírito o quinhão que lhe pertence, importa à defesa do equilíbrio conseguido o aproveitamento do remanescente para um sucedâneo, diversivo e distensor, do esforço penoso que a actividade profissional custou. Sob pena de o aborrecimento invencível, proverbial angústia vinda da desocupação e da passividade de espírito - ou, por eles, o frenesim do movimento sem rumo nem freio - traçarem o círculo fechado que reconduz à fadiga nervosa, ponto de partida.
Estas adversativas significam apenas que o problema dos tempos livres não se resolve, antes se agrava, com o progressivo empolamento, se do mesmo passo as sociedades prósperas e evoluídas, únicas em que verdadeiramente assume aspectos críticos, não se desempenharem do encargo de imaginar e estabelecer as condições do seu aproveitamento feliz.
Existe, entretanto, outra possibilidade de se desvirtuar o sentido e de se frustrarem os objectivos sociais da política de redução da duração do trabalho.
Seria, o caso, como já ocorre com relativa frequência, de as folgas mais prolongadas darem ensejo ao exercício de actividades profissionais em (regime de "tempo parcial". Dir-se-ia então que se tinha obtido o "descanso" suplementar bastante para dar viabilidade a novas causas de fadiga. Trata-se, em qualquer hipótese, de um aspecto melindroso e ingrato da questão, que parece só poder equacionar-se, em face da visão global do mercado de 'trabalho e do conhecimento da situação dos trabalhadores com duplo emprego.
10. Cabe assinalar, para fecho do parágrafo, que várias legislações nacionais definem "duração do trabalho" em função da posição activa do trabalhador, e que outras dão realce precisamente ao requisito ia sua disponibilidade pessoal. Segundo estas, período de duração do trabalho será o período durante o qual o trabalhador não tem liberdade de dispor do seu tempo e dos seus movimentas 26.
§ 4.º
Perspectiva do legislador: a regulamentação da duração do trabalho
11. A circunstância de o problema da duração do trabalho mover interessas e determinar vontades que, embora ideal e tendencialmente convergentes, se contrapõem no domínio concreto imediato justifica, por motivo de ordem político-social, a síntese do legislador.
Mas a própria lógica do sistema jurídico conduziria, por si, a não omitir um aspecto pertinente da regulamentação do regime do contrato de trabalho.
Na verdade, como nota o Prof. Alonso Garcia 27, "há que ter em conta que a prestação do trabalho não é uma prestação abstracta, mas concretizada e tornada efectiva no tempo"; ou, como observa o Dr. Bernardo Xavier 28,
22 "O alongamento do tempo de trajecto autoriza a que se fale em média de onze horas de trabalho diário para os operários da região parisiense", Jean Dubois, in "Une vie de travail: cycles et durée" (Revue de l'action populaire, 155, fl. 183).
23 Como notou o Sr. Silva Leal, "O regime jurídico do horário de trabalho", in Estudos Sociais e Corporativos, n.° 3, fl. 94, "... esta diversidade ide situações que são coetâneas e que, por vezes, coexistem lado a lado, parece ser suficientemente reveladora do que há de falso na concepção unitária e homogénea de cada tampo - e espacialmente do nosso".
24 "Aproximamo-nos desse absurdo que consiste em o homem trabalhar para se libertar do trabalho...", Silva Leal, in ob. e loc. cit.
25 Émile Rideau, ob. cit, fl. 157.
26 La Durée du Travail..., fl. 207.
27 Ob. cit., fl. 387.
28 Regime Jurídico do Contrato de Trabalho, anotado, Coimbra, 1969, fl. 91, nota 1 ao artigo 45.°