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756 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 72

§ 5.º

Antecedentes históricos remotos

18. Para o jurista, ao menos para esse, não tem hoje grande sentido preocupar-se com o problema da duração do trabalho senão enquanto se reporta ao trabalho subordinado 49.
O trabalhador autónomo ou por conta própria, o profissional de actividade livre, para não dizer o artista e o puro diletante, dispõem do seu tempo: repartem-no em períodos de trabalho e de lazer, interrompem quando lhes apraz o esforço produtivo, graduam-lhe a intensidade e marcam-lhe o ritmo, ou seja, na linguagem que vem a jeito..., elaboram, cumprem e fiscalizam o seu próprio horário de trabalho. Ultrapassam, decerto, algumas vezes os devidos limites, comprometendo a saúde ou cerceando oportunidades de imprimir à sua vida rumos de ocupação desinteressada. Agem, no entanto, por decisão livre da vontade, ainda quando esta lhes determine prejuízos irremediáveis; não directamente compelidos pelas injunções de entidade em cuja subordinação jurídica e sob cuja dependência económica se encontrem.
Caso singular é que exactamente nos antípodas sociológicos destes "trabalhadores" desonerados de vínculos coercivos se situassem homens em relação aos quais teria sido inimaginável e será desapiedada ironia pôr também o problema da duração do trabalho. Os escravos, evidentemente.
A filosofia do trabalho na Antiguidade, mundo clássico não exceptuado, decorria a partir do que alguém denominou, por palavras de Aristóteles, a aceitação da fatalidade de uma ordem natural. Segundo esta, o escravo estaria predestinado ao trabalho, sem discriminação de tempo e sem limitações horárias, para que o homem digno desse nome pudesse aplicar-se à actividade desinteressada da vida intelectual e da vida civil 50.
Tem-se contestado, é certo, a validade do juízo sumário segundo o qual o mundo antigo desprezava todo o labor produtivo, e afirmado, contra a opinião mais difundida, que a Antiguidade não chegou a "formular uma filosofia geral do trabalho". Quando muito, a sociedade helénica, porque desta se trata principalmente, teria estabelecido uma hierarquia de trabalhos paralela à hierarquia das classes 51.
A posição relativa do trabalhador nessa hierarquia, se de algum modo a reflecte a República ideal de Platão, sabemos de sobra qual era. E a actividade do escravo só poderia ser, em todo o caso como de facto foi, a menos nobre e a mais dura.
Se a utilidade dos escravos, como nos deixou Aristóteles, era, à semelhança da dos brutos, a de ajudarem "com as forças do corpo a satisfazer as necessidades da existência" 52, não seria aventuroso suspeitar que o limite temporal do seu esforço acompanhava o da própria resistência física; se algumas circunstâncias inspiravam acaso a poupá-la, não eram decerto as do seu interesse ou direito.
Discreteando de tal sorte os claros gregos, seria ocioso inquirir dos trabalhadores mais ou menos forçados que juntaram pedra para as pirâmides faraónicas, dos construtores de Korsabad e Babilónia, dos remadores das embarcações fenícias, sobre se alguém lhes contou as horas de labor violento ou defendeu os instantes de repouso.
Como o trabalho subordinado livre ou era desconhecido ou de minguado aproveitamento, o regime de trabalho servil, com todas as implicações em matéria de duração, dominou o mundo pré- cristão, deixando de si desoladora imagem.

19. São escassas naturalmente as notícias sobre a matéria no que respeita à alta Idade Média e, de um modo genérico, ao período que antecede o regime gremial.
E escassíssimas seriam, ao que tudo leva a pensar, as normas que por então definiam esta "instituição do dia laboral" 53.
As corporações, porém, não a ignoraram. A jornada de trabalho obedecia a limites, a semana tinha um "dia do Senhor" rigorosamente prescrito, a roda do ano encontrava os seus dias santificados de preceito.
Segundo se tira do famoso Livre dos Métiers, de Paris, devido a Étienne Boileau, contemporâneo de S. Luís, rei de França, o trabalho não ultrapassava em regra nove a dez horas durante o Inverno e doze horas durante o Verão 54. O número de dias feriados, compreendendo domingos e festividades, atingia decerto oitenta e dois, mas parece que chegava a orçar pela centena.
Estes regimentos eram, afinal, tão meticulosos que por lá se descobre, a par dos cuidados com as horas de abertura dos locais do ofício e o despegar dos obreiros, nada menos do que a previsão do que se poderia chamar, sem grande desaforo de linguagem, o condicionamento do trabalho extraordinário. Com efeito, no citado Livre des Métiers, está uma norma do regulamento dos tecelões segundo a qual "ninguém deste ofício deve começar o trabalho antes do nascer do Sol, sob pena de multa, salvo para acabar o tecido urgente, e apenas um dia". Quanto aos "criados dos tecelões", diz-se-nos que deviam largar o serviço "ao soar da primeira badalada de vésperas".
Também os regimentos das nossas corporações se ocuparam da regulamentação do trabalho e capítulos afins. Estabeleciam, por exemplo, "o horário da abertura das tendas, desde o sol saído até às 4 horas no Inverno e até às 6 horas no Verão" 55.
As câmaras, por sua vez, não se eximiam a dizer de sua justiça. "... Conhece-se uma postura da Câmara do Porto, de 1401, segundo a qual os mestres da referida cidade não deveriam fazer qualquer obra desde o sabbado sol posto até segunda feira sol sahido. Semelhante disposição se continha nas posturas, municipais de Sesimbra, aliás de harmonia com o que se estabelecia nas próprias Ordenações Afonsinas, livro I, t. 62, § 15.°, e livro III, t. 36, § 1.°, sendo de crer que o mesmo preceito se encontrava nas posturas de muitos outros concelhos" 56.
Virá ao caso pensar que a hodierna competência municipal para fixar os chamados períodos de abertura (porque mais longe não vai) se louva em boa tradição e enraíza nos mais ilustres precedentes.
Mas há mais. Não deixará de surpreender que, mesmo em domínio geralmente havido como objecto dos primeiros cuidados por parte dos nossos contemporâneos, a Idade Média se nos tenha atrevidamente antecipado.

49 "O direito do trabalho desatende ao trabalho independente: supõe sempre um estado de subordinação do trabalhador", Paul Durand e R. Jaussaud, ob. cit., fl. 7.
50 Leonel Franca, "Cristianismo e trabalho", in A Crise do Mundo Moderno, Lisboa, 1945, fl. 318.
51 É a opinião expressa, entre outros, por Paul Durand e R. Jaussaud, ob cit., fls. 8 e segs.
52 Política, livro I, capítulo II, § 14, ap. Leonel Franca, ob. e loc. cit.
53 Alonso Garcia, ob. cit., fl. 387.
54 Prof. Soares Martinez, "Curso de Direito Corporativo", I, Lisboa, 1962, fl. 25.
55 Id., ib., fl. 38.
56 Id., ib.