7 DE JUNHO DE 1945
545
de aproveitamentos hidráulicos, de ao abrigo de ambas ter sido requerida a concessão do aproveitamento do rio Zêzere, de ter sido aprovada e aceite a respectiva proposta e de a celebração do respectivo contrato ter ficado apenas dependente do traçado da linha de transporte da energia entre a central e Lisboa, de ter sido nomeada uma grande comissão para dar o seu parecer no prazo de sessenta dias sôbre êsse traçado, de essa comissão nunca mais ter dado êsse parecer e de, em conseqüência, o rio Zêzere continuar até hoje a correr improdutivamente para o Tejo. O que teríamos ganho, a quantas aflições não teriam sido poupados os poderes públicos durante os últimos seis anos, se não tivesse havido essa imperdoável falta de entusiasmo oficial pelo grande empreendimento?
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Depois da outra guerra começou naturalmente a desenvolver-se a viação automóvel no País. A França, e depois a América do Norte, inundaram-nos de automóveis ligeiros e de camionetas para transporte de passageiros e de carga. Multiplicaram-se os pedidos e foram dadas muitas concessões para a exploração de carneiras de automóveis; o público, ao principio um tanto ou quanto receoso do novo meio de transporte por causa dos desastres um pouco freqüentes, não tardou a afeiçoar-se-lhe e a acentuar a sua predilecção por aquilo a que Baudry de Saunier chamou «o caminho de ferro à porta de cada um».
Paralelamente, as carruagens dos combóios começaram a transitar cada vez mais despovoadas e as suas estações a acusar cada vez menor afluência de mercadorias. Todavia a opinião dominante, olímpica e assente definitivamente nas reüniões dos conselhos de administração das emprêsas ferroviárias era esta: o automobilismo não poderá nunca ombrear com o combóio; a sua exploração, feitas bem as contas, é muito mais cara, a duração do seu material incomparàvelmente mais curta e, como as emprêsas exploradoras da camionagem não sabem fazer contas, em breve estarão falidas, porque no momento em que começarem a ter de substituir o seu material verificarão que, não tendo constituído as necessárias reservas, terão de ir para a falência e liquidação.
O prognóstico poderia ter muitas e bem fundadas razões, mas a verdade é que não se verificou, pelo menos com a rigorosa exactidão com que fôra formulado. E por isso, ao começar o conflito mundial de 1939, não eram as emprêsas de camionagem que mordiam o pó da falência, mas eram as emprêsas ferroviárias que caíam de joelhos diante do Govêrno, pedindo instantes providências contra a terrível concorrência da camionagem.
A guerra veio modificar um pouco a posição relativa dos dois sistemas em luta e, faltando a ambos com o combustível e os rodados, não há dúvida que revelou até certo ponto a superioridade real do caminho de ferro e veio demonstrar a necessidade de lhe reconhecerem o seu autêntico valor como instrumento económico indispensável, que portanto é mester conservar e amparar. Certo é, porém, que já foi dentro dêste critério protector e de necessidade pública que se lhe consentiu, para que não parasse de todo, que substituísse o seu combustível normal, que é o carvão de pedra, pelas preciosas reservas do património nacional, que são as nossas matas, sacrificadas aliás a um preço indefensável, quer sob o ponto de vista puramente económico, quer sob o ponto de vista técnico do seu valor calorífico.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Mas agora, com os novos combustíveis líquidos de alto rendimento térmico, com os novos motores de explosão de diagramas muito melhorados, com os progressos realizados na indústria da borracha, com os aperfeiçoamentos portentosos das novas ligais metálicas, em que a resistência específica parece ter crescido na razão inversa do pêso, as perspectivas da futura concorrência do automóvel ao caminho de ferro aumentam, assustadoramente para êste e por isso mesmo é que se impõe indiscutìvelmente o delineamento das normas em que deve assentar a estreita colaboração, e não a concorrência, entre um e outro.
A proposta de lei visa exactamente isso e, quanto a mim, apenas isso: definir a cada um dos sistemas a sua esfera de acção, impor-lhe as respectivas normas de actividade e levá-los o mais possível à colaboração, o menos possível à concorrência. Não me assusta que esta desapareça de todo quando aquela apareça perfeita, porque nessa altura teremos assegurado o objectivo económico de interêsse colectivo: a garantia do transporte do passageiro e da mercadoria em condições simultâneamente de barateza, de segurança, de comodidade e de pontualidade. Mas poderá haver tudo isto sem a concorrência?
Aqui há muitos anos, Raymond Poincaré, ao encerrar uma conferência de Charles Gide sôbre concorrência ou cooperação e depois de citar uma das muitas contradições do velho Proudhon «tomai partido pela concorrência e não tereis razão, tomai partido contra a concorrência e também não tereis razão, donde podereis concluir que tereis sempre razão», fez sôbre o conceito que se deve ter da concorrência umas judiciosas considerações, que se resumem no seguinte: a concorrência nem merece os excessos de honra com a que têm cumulado os economistas liberais, nem as indignidades de que a têm responsabilizado os socialistas. E Poincaré terminava por arriscar, para o conceito de concorrência, a definição seguinte: a concorrência é a própria liberdade em movimento. Na verdade, embora um pouco retórica na sua expressão formal, esta definição não deixa de ter o seu conteúdo substancial: é que para haver liberdade no movimento é indispensável que não sobrevenha o entrechoque, porque, se êle se dá, há fatalmente paragem e, portanto, cessação do movimento.
Aplicado o conceito à concorrência entre o sistema ferroviário e o sistema rodoviário, poderemos também concluir que se não forem definidas com precisão as trajectórias que se reservam a cada um dêles, não digo no espaço geográfico, mas no espaço económico, haverá choque e com êle a subseqüente paralisação, mais tarde ou mais cedo, senão de ambos os sistemas, pelo menos daquele que estiver animado de menor fôrça viva. E creio que não é isso o que desejam nem os que julgam que a proposta se destina a subordinar o automóvel ao caminho de ferro, nem aqueles que desejam não lhes venha a faltar a possibilidade de irem de Lisboa ao Pôrto, còmodamente, em três ou quatro horas.
Ora a coordenação de transportes que se pretende obter com a proposta de lei em discussão estabelece precisamente o princípio da existência de uma concorrência regrada, quer do transporte ferroviário com o transporte automóvel, quer das várias carreiras de automóveis e da indústria do automóvel de aluguer entre si.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Eu estou plenamente de acôrdo com o intuito da proposta, o que não quere dizer que o esteja com todos os métodos e processos que se contêm no seu articulado, mas, quaisquer que venham a ser êsses métodos e processos, o que desde já faço é o voto mais ardente por que êsse intuito seja perfeitamente compreendido pelo País e que dele se compenetrem com