7 DE JUNHO DE 1945
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vicissitudes por que passou a construção das nossas principais linhas férreas e dos primeiros anos da sua explorarão é um longo rosário de acordos e combinações feitas e desfeitas, de convénios entre accionistas e obrigacionistas, de processos judiciais, pairando sôbre tudo isso a asa protectora do Anjo da Guarda do Estado. Daí a mentalidade especial que se criou ao serviço público do caminho de ferro, que o levou a convencer-se de que fôssem quais fôssem as contingências do futuro estaria sempre indemne e assegurada a sua condição de filho dilecto e protegido do Estado.
Um dia surgiu o automóvel dotado com o motor de explosão, que é incontestàvelmente um instrumento de transformação da energia calorífica em energia cinética, muito superior à máquina de vapor, e a ancilosada mentalidade ferroviária parece não ter compreendido o que isso continha de futuras e perigosas possibilidades de concorrência. O resultado foi o que se está vendo.
Sejam pois quais forem as futuras condições a estabelecer para a exploração ferroviária, o que eu reputo indispensável é que tal mentalidade seja radicalmente transformada desde o carregador da estação até aos mais altos postos de direcção. Será isso possível? Será porventura difícil? É pelo menos muito desejável, e eu não o reputo impossível se da fusão das emprêsas que se prevê, e, repito, creio que se deseja, na proposta do Govêrno, resultar uma emprêsa nova, mas totalmente nova, nos métodos administrativos e nos métodos de exploração, servida por gente nova e desempoeirada e já formada na escola magnífica das realizações do Estado Novo.
Para o conseguir o Govêrno nem sequer precisava ser dentro da actividade ferroviária o representante de um Estado que é proprietário, em propriedade livre, de mais de metade das vias férreas, senhorio directo e prestes a ser senhorio útil das mais importantes concessões e que é ainda o possuidor da maioria absoluta do capital da maior organização ferroviária do País. Bastar-lhe-ia, se tanto não houvesse, o uso criterioso de qualquer fórmula de jure cunstituendo, inspirada nas modernas ideas sôbre o direito do Estado, para obter a solução mais consentânea com o interêsse público, sem, por um lado, se prender demasiadamente com as românticas cláusulas das condições do resgate das concessões, nem por outro lado ter de abusar da precária situação económica actual das emprêsas, que os inventários do seu material e os balanços das suas contas claramente deixam transparecer.
Confiamos, pois, em que o Govêrno encontrará essa fórmula justa e desejável.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — O outro dos tópicos da proposta de lei é a organização disciplinada do transporte colectivo em automóvel e do transporte de aluguer, e essa é certamente a parte mais discutida da proposta.
Para muitos, os intuitos desta, quanto a essa parte, são os de uma completa subordinação do transporte automóvel ao transporte ferroviário. Não adiro totalmente a esta tese, porque de facto não é lícito fazer tal dedução do que se contém na proposta. Tudo dependerá, é claro, da maneira como ficar elaborada a lei emanada desta Assemblea, mas, sobretudo, daquilo que vier a ser estabelecido nos diplomas regulamentares da mesma lei. Mas, quanto a mim, o princípio essencial da proposta nesta matéria é o da concentração gradual das emprêsas que actualmente exploram o transporte automóvel e não tenho a menor relutância em dar a minha conformidade a êste modo de ver, fazendo-o sem necessidade de forçar o meu espírito crítico nem o meu raciocínio, antes podendo apoiar-me directa e francamente sôbre um e outro. Dou essa minha concordância até colocando-me simplesmente dentro da lógica dos factos, visto o último relatório publicado pela Direcção Geral dos Serviços de Viação nos mostrar ter baixado o número de emprêsas concessionárias de carreiras automóveis de cêrca de 400, que existiam em 1934, para 230, em 1943, sendo aliás certo que o número de carreiras concedidas e o número de quilómetros de estrada por elas servidos subiram, no mesmo período, respectivamente cêrca de 20 por cento e de 33 por cento, o que quere dizer que a concentração dessas emprêsas se tem vindo a fazer espontâneamente e com proveito para o público.
Não sei se com isso o serviço de transportes colectivos em automóvel foi melhorado, porque tenho pouca experiência pessoal dêsses serviços. Imagino, porém, que se porventura piorou não foi em conseqüência dessa concentração, mas tam sòmente por efeito das dificuldades criadas pela guerra.
O Sr. Melo Machado: — V. Ex.ª sabe se para essa concentração não terá concorrido a acção preponderante das dificuldades do momento?
O Orador: — É possível. Não me admiro que assim seja. No entanto, isso em nada modifica a minha tese. Penso mais que agora, na paz, êsse serviço pode e deve melhorar muito, mas que para isso se torna indispensável a constituïção de emprêsas cada vez mais robustas, sob o ponto de vista financeiro, cada vez mais experimentadas e apetrechadas, sob o ponto de vista técnico, e cada vez mais bem organizadas, sob o ponto de vista da administração.
A impressão que tenho hoje dos serviços de transporte colectivo de passageiros não é a de uma absoluta perfeição. Suponho não susceptibilizar ninguém afirmando que poderão ainda aperfeiçoar-se muito quanto a asseio, segurança e comodidade do passageiro e pontualidade do serviço. Mas isso só poderá exigir-se a emprêsas dotadas de recursos adequados a êsse mínimo de exigências. Dir-me-ão que, como o óptimo é inimigo do bom, nunca poderão conciliar-se serviços perfeitos, sob o meu ponto de vista, com serviços baratos. Mas, dentro da relatividade de todas as cousas, a mim satisfar-me-á o absoluto asseio, a absoluta comodidade e segurança, dentro da possível barateza. As três primeiras características do serviço serão intrínsecas, digamos, subjectivas do próprio serviço; a última será uma característica objectiva, conseqüente, e, portanto, variável, consoante as circunstâncias. Se o viajar pode considerar-se em certa medida uma necessidade económica, não está demonstrado que seja uma vantagem social o exacerbar a mania deambulatória pela aliciação do preço da viagem, conseguida muitas vezes à custa de injustos sacrifícios impostos a outros sectores da economia e sem qualquer proveito para a economia do conjunto, como está sucedendo neste momento, em que as tarifas de passageiros, quer na camionagem, quer, sobretudo, nos caminhos de ferro, se conservam inexplicàvelmente desactualizadas em relação ao índice do custo geral da vida.
Por isso, Sr. Presidente, nenhuma relutância tenho em aprovar a orientação económica que se desenha na proposta de lei, no que respeita ao transporte colectivo em automóvel e à indústria do aluguer, encaminhando ambas, suasòriamente, para uma concentração em grau conveniente, da qual possam decorrer para o público as seguintes vantagens:
1.° Extensão a todo o País, mesmo aos pontos mais remotos, de um serviço regular de camionagem;
2.º Que êsse serviço seja irrepreensível sob o ponto de vista de asseio, comodidade, segurança e pontualidade.