546
DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 169
sentido prático, dinâmico, com patriótico entusiasmo, todos aqueles que hajam de ser amanhã os executores do que é hoje aqui apenas pensamento e aspiração do Govêrno e da Assemblea Nacional.
Vozes: — Muito bem!
O Orador: — Agora, Sr. Presidente, algumas palavras sôbre o método delineado na proposta para a execução da coordenação. Êsse método consiste essencialmente no seguinte:
a) Unificação de toda a rêde ferroviária do País como base da completa reorganização da sua exploração e da melhoria da sua eficiência económica;
b) Organização disciplinada do sistema circulatório do transporte automóvel em todo o País, de forma a abranger com ela todo o corpo continental, desde os centros mais populosos até às regiões mais remotas e despovoadas;
c) Instituição de medidas tendentes a obter a mais perfeita cooperação entre os dois sistemas, baseadas no princípio genérico de se reservar ao caminho de ferro os grandes percursos e o transporte maciço de mercadorias e ao automóvel as menores distâncias e a pluralidade da grande distribuïção.
Fundamentalmente foram estes os princípios que informaram as medidas de coordenação de transportes em todos os países que atacaram êsse problema, divergindo naturalmente os processos, de país para país, consoante as circunstâncias económicas, sociais e demográficas de cada um e sobretudo conforme o índice de valor económico que cada um dos sistemas representa no acervo da riqueza nacional.
E, assim, quando entre nós se propõe a redução a uma única das quatro ou cinco explorações ferroviárias distintas e autónomas que se exercem sôbre os 3:500 quilómetros de via férrea que possuímos, nem fazemos maior concentração nem enfrentaremos problema mais difícil do que o que enfrentou a Inglaterra em 1921 decretando a redução das cento e dezanove emprêsas que exploravam os 31:000 quilómetros da rêde total dêsse país a quatro grandes emprêsas.
Em França, como todos sabem, fez-se a unificação da exploração de todas as grandes linhas, quer do Estado, quer concedidas, concentrando-a na mão de uma única emprêsa exploradora, embora deixando subsistir todas as concessionárias como sociedades financeiras, gestoras, mediante certas normas, do capital com que haviam ficado dentro da emprêsa única exploradora. A Alemanha, que é talvez com a Bélgica o país de maior densidade ferroviária por unidade de superfície, essa simplificou à sua maneira êste problema da coordenação dos transportes terrestres e fluviais, enquadrando todos dentro de um regime de subordinação ao caminho de ferro, comandado por êste.
Como vai fazer-se entre nós a concentração das emprêsas ferroviárias?, preguntava há dias o jornal O Século, com uma certa inquietação.
A proposta governamental é bastante clara a tal respeito, quando prevê, e quanto a mim deseja, a fusão por acôrdo de todas elas, para dar lugar a uma única e nova emprêsa, em cuja composição, presumo eu, o Estado Português, neste momento possuidor, em propriedade perfeita e livre, de mais de 50 por cento de toda a rêde ferroviária, não poderá deixar de entrar numa situação de relêvo e de domínio. Mas já a proposta não é para mim tam clara quando dá a entender que, para facilitar a fusão, poderá prorrogar os prazos das concessões. Porque uma de duas: ou as emprêsas actuais se fundem numa única e desaparecem individualmente, elidindo-se com elas os contratos de concessão que tinham com o Estado, ou não desaparecem, e nesse caso a prorrogação das concessões que houver de fazer-se não poderá ter lugar nas condições originais, isto é, naquelas condições que representavam a compensação do esfôrço que as emprêsas iam fazer, construindo as linhas e comprando o material circulante.
Fusão, no sentido rigoroso da palavra, significa desaparecimento da personalidade jurídica de cada um dos elementos que se fundem no todo, para dar lugar a uma nova entidade que surge. Se esta forma é viável, como julgo que é, e se, em conseqüência, amanhã aparece em Portugal uma nova emprêsa cuja composição e cuja administração não podem deixar de se verificar num regime de economia mixta, isto é, de associação de capitais privados com capitais do Estado, desde já declaro que a fórmula me satisfaz plenamente e julgo que satisfará à grande maioria da Nação, sem esquecer o nosso querido e ilustre colega Dr. Antunes Guimarãis, a quem, se porventura pode repugnar um monopólio ferroviário nas mãos de uma emprêsa, exclusivamente privada, não pode deixar de agradar tal monopólio em poder de um consórcio em que o Estado terá, além dos seus direitos majestáticos, os direitos de maior accionista ou parceiro.
O Sr. Antunes Guimarãis: — V. Ex.ª dá-me licença?
Devo dizer que não deixarei de expor várias considerações em oposição a êsse ponto de vista quando se tratar da discussão na especialidade. Mas quero dizer desde já que divirjo da opinião de V. Ex.ª, como, aliás, afirmei quando se tratou das propostas de lei sôbre electrificação e fomento industrial. Isto é, não concordo com o Estado capitalista associado a emprêsas privadas.
O Orador: — É uma opinião.
O Sr. Mário de Figueiredo: — S. Ex.ª prefere o Estado empresário...
O Sr. Antunes Guimarãis: — Prefiro o Estado a administrar aquilo que é nosso, o património nacional.
O Sr. Mário de Figueiredo: — Isso é um Estado empresário.
O Sr. Antunes Guimarãis: — V. Ex.ª chama-lhe um Estado empresário e eu chamo-lhe Estado bom administrador.
O Orador: — Sr. Presidente: os organismos ferroviários de direito privado que nasceram em Portugal na época quási gloriosa da nossa história que se chamou a Regeneração, e se situa no terceiro quartel do século passado, tiveram uma infância atribulada e suportaram vicissitudes nos primeiros anos de vida que lhes imprimiram fundo carácter pela existência fora. Em Portugal, como aliás em França, de onde nos veio a inspiração para os primeiros empreendimentos ferroviários, êles não surgiram pròpriamente como medidas de fomento partindo da iniciativa dos govêrnos, concebidas dentro de um plano de conjunto maduramente estudado para ser criteriosamente executado. Nasceram antes como miragem de vastas operações financeiras, igualmente sedutora para a grande banca estrangeira e sobretudo para a francesa e para as aflições financeiras da administração pública de então, a qual, sempre a braços com apertos de tesouraria, nelas viu um providencial recurso para alargamento do nosso crédito externo, ao tempo tam enfraquecido. Foi isto que fez escrever a Oliveira Martins, ao historiar a época: «É necessário hipotecar o futuro para liquidar o passado? Faça-se, faça-se tudo, aceite-se tudo, mas haja dinheiro e caminhos de ferro». A própria história das