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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.° 189
nem para o democratismo demagógico. Não para o absolutismo do Estado; êste tira o Poder de si mesmo e para si mesmo. Confunde o Poder com o sujeito que o exerce, tornando-o criador do próprio direito, da justiça e da verdade. Tudo é sujeito ao Poder e ao engrandecimento do Estado: família, trabalho, inteligência, dignidade, consciência. É a despersonalização da pessoa humana, convertida numa roda comum da grande máquina do Estado. A lei, o direito, legitimam-se por si mesmos, e legitimam-se pelo simples acto da promulgação. O sujeito do Poder nada tem acima de si mesmo, à a deificação do sujeito do Poder, o absolutismo pessoal divinizado.
Em tal sistema não há lugar para fiscalização nem tem sentido a representação. As assembleas políticas nestes sistemas não existem, e, se existem, são um ilogismo ou uma transigência com os costumes internacionais, ou a arena onde os vassalos mais dedicados e os servidores mais favorecidos aclamam os novos Césares: Avé César... O simples refôrço do poder de fiscalização anula a acusação de cedência para o estatismo que à proposta possa ser feita. Estaremos então em presença de uma transigência com o falsamente chamado movimento democrático do mundo? Também não. O democratismo demagógico tira o Poder da multidão, única fonte onde reside, para que existe e para a qual se exerce.
Isto significa que a multidão é a criadora do direito, da justiça, da moral e da verdade, que é a raiz de todas estas* realidades. Não podendo exercê-lo por si mesma, delega o Poder em mandatários, que, em seu nome e para seu proveito, devem exercê-lo. A lei é teòricamente a expressão da vontade geral. Mas esta não existe ou não pode constatar-se. Em rigor doutrinário, o democratismo inorgânico realiza o paradoxo de criar milhares de soberanos, mas em realidade cria milhares de escravos daqueles mesmos que elege. Na prática fica a oligarquia, o partido, comandado pelo chefe, a quem, afinal de contas, se reduz a pregoada vontade geral. É a ditadura do grupo, da clientela, a pior ditadura, porque encontra no próprio abuso, a sua justificação.
Ou o Poder passa das mãos da multidão para os delegados e temos a tirania, ou a multidão o guarda e temos a demagogia — ambas negação formal da fiscalização.
A fiscalização supõe e implica interêsse colectivo, que por natureza está acima de todo o interêsse particular, e precisamente para o realizar humanamente.
Sr. Presidente: que significa então a proposta? Sabido o que ela não e, pregunta-se o que ela é. Peçamos a resposta autorizada ao autor do relatório que a precedeu — que a proposta tem um relatório, o mais brilhante, o mais eloqüente de quantos relatórios têm acompanhado as propostas vindas a esta Câmara: é o discurso de que o Sr. Presidente do Conselho fez preceder a sua apresentação. Que disse S. Ex.ª do sentido da proposta?
Expressamente se deseja mais numerosa composição desta Câmara, mais reforçado o seu poder de fiscalização da acção governativa e da administração pública, e para tanto um pouco mais largo período do seu funcionamento e diverso método de trabalho.
Estas palavras evocam e actualizam dois grandes problemas: um de ordem histórica, outro de índole doutrinal. Significam que a proposta traduz uma nova étape na evolução da nossa tradição política, uma sadia afirmação da democracia orgânica, conforme as determinações da nossa compleição histórica. Nunca a nossa filosofia política viu a origem primária do Poder no príncipe ou na multidão. O poder do Estado é limitado pelo direito e pela moral. Esta doutrina não é só da Constituïção de 1933, é de toda a nossa tradição política. O título de aquisição, legitimado pelo consenso da Nação, era ratificado pela aclamação. A êsse título se juntava ainda, por singular determinação da nossa jurisprudência, o título de exercício: «senão, não»...
A civilização cristã premuniu, desde o seu berço, os bens particulares contra as invasões do poder público e organizou a intervenção do povo nas medidas que tocavam a propriedade.
Em Portugal foi-se mais longe.
Sob a égide da Igreja, Portugal soube resistir sempre, em nobre exemplo dado à Europa inteira, a todos os absolutismos do Estado e da rua, e pôde participar, de maneira que nenhum outro povo igualou, na acção governativa e na administração pública.
Nunca o absolutismo encontrou adesão em Portugal, mesmo quando êle enchia de grandeza e esplendor todas as cortes da Europa. E quando um dos mais altos e poderosos príncipes se permitiu, orgulhosamente, escrever a defesa altiva do absolutismo, uma única voz se ergueu a combatê-lo, clara, vibrante e vitoriosa: a voz forte de um ilustre professor da Universidade de Coimbra. Soares não tem apenas o mérito e a glória de ter escrito uma resposta brilhante, que é a afirmação de um poderoso talento, mas a de ter lançado os fundamentos sólidos e definitivos da democracia orgânica e seus direitos fundamentais, tanto na ordem interna como na ordem internacional. Mas a designação é um acto moral que envolve nas actividades dos que a recebem as responsabilidades dos que a praticam. Daí vieram as côrtes e os procuradores dos conselhos, como órgãos do poder de fiscalização. E porque as côrtes eram episódicas e a lei é contínua, no tempo e no espaço, se julgava o povo obrigado a exercer êsse direito, mesmo quando as côrtes não funcionavam. Se o príncipe exercia o Poder em nome de Deus, para a Nação, sempre que êle se esquecia de o exercer ou o exercia contra os direitos e interêsses da colectividade o povo o chamava ao cumprimento do dever, com lealdade mas com firmeza. Os tumultos do alpendre de S. Domingos, para avisar D. Fernando dos abusos que cometia, e as advertências dos vassalos leais e corajosos: «senão, não»... são formas da colaboração no Govêrno, que se renovam louvàvelmente na proposta.
Poderá a alguns parecer despiciendo o direito de fiscalização. A mim parece que nenhum outro o iguala em significado e eficiência, sobretudo se o considerarmos com o direito de representação e de queixa, com que andou sempre unido. A lei é feita por quem a aplica. Que importa que se promulguem leis boas se elas têm má aplicação? Que interessa ao País que haja leis justas se elas têm uma aplicação injusta? Que vale ter leis sadias se elas, na sua aplicação, são deformadas? Desde o Gabinete do Ministro à regedoria da freguesia, a lei pode sofrer alterações que lhe dêem um sentido oposto ao que lhe dera o legislador. À sombra das melhores leis se pode estabelecer a anarquia o praticar a iniqüidade.
Conviria que na revisão se tivesse em conta o ambiente social que cresce e se adensa pelo mundo?
O nosso ilustre colega Sr. Dr. Oliveira Ramos lamentou no seu formosíssimo discurso que se não tivesse aproveitado o ensejo da revisão para se introduzirem na Constituïção mais largos e expressivos princípios de «segurança social», hoje consignados em todas as Constituïções do mundo. S. Ex.ª disse que, entre todas elas, a nossa tem um lugar de honroso relêvo. Isso nos poderia bastar. Mas em afirmação de respeito pelo fulgurante espírito de S. Ex.ª atrevo-me a dizer que o que entre nós falta não são princípios de «segurança social», mas o espírito de compreensão dos que temos e coragem para os levar à sua plena realização. A Quadragésimo Anno continua a Magna Carta da «segurança social» para todo o mundo. Pois eu creio que, sem esfôrço, se poderá tirar toda essa imortal encíclica do Estatuto