8 DE JANEIRO DE 1948 91
epidémico, de que ele próprio não conseguiu depurar a sua alma ardente de paladino.
Alguém que veio depois de Sidónio, do mesmo cenáculo de Coimbra, logrou, no entanto, dar forma e expressão ao seu sonho de beleza, procurando despojá-lo das impurezas políticas da época. Esse homem, mais frio, mais objectivo e, sobretudo, refractário a influências passionais, concretizou, dez anos depois, nestas palavras proféticas, as primeiras linhas de um programa: «Há ideias de tal maneira gastas que já não é possível edificar sobre elas nada mais do sólido». Esta sentença ressoa como um dobre de finados, como o som cavo da tampa de um ataúde, que tomba para não mais se levantar.
A alguém, que foi amigo de Sidónio e era um alto espírito, ouvi dizer um dia que o sidonismo marcou simplesmente como um risco na água. É possível. Faltava-lhe porventura a sequência lógica de uma prévia intenção de comando; faltava-lhe a polarização da vontade nacional numa direcção firme e consciente; faltava-lhe, enfim, o que caracteriza esse estado eminentemente genético da vida dos povos, em que eles se organizam dentro de formas estáveis e partem confiados para o futuro, erguendo os seus destinos nas suas próprias mãos.
O sidonismo foi, no entanto, o portador abençoado de um pensamento de justiça imanente e de bondade aliciante, de uma ideia generosa e prematura, desfraldando ao vento inclemente do acaso a vela branca de uma ilusão fagueira, de proa feita ao país da quimera, perdido lá ao longe na névoa de um sonho.
Foi essa quimera dourada que o povo informou numa lenda de eterna fragrância, que cerca com um nimbo de poesia e saudade a última flor de cavalaria que surgiu na boa terra portuguesa.
Quando me lembro da figura gentil de Sidónio Pais vem-me sempre à memória aquela formosa boutade de Alfred de Vigny, que, em tradução libérrima, dá isto, pouco mais ou menos: «No dia em que de todo desaparecerem no Mundo a lealdade, a candura, a abnegação, a honra, a dignidade, o amor, tudo o que ainda resta de belo e de grande à luz do sol, nesse dia abra-se um furo até ao centro da Terra, encha-se bem de pólvora e largue-se-lhe o fogo, para que o nosso planeta estoire como uma bomba no meio do firmamento».
Como todos os poetas de eleição, Vigny foi profeta. Quanto à primeira parte da sua profecia, verifica-se, de facto, que a derrocada moral se aproxima num declive impressionante - e, o que é pior, sob o signo da hipocrisia -, ameaçando subverter, na voragem da tráficância e da mentira, todos os princípios basilares da ética. No que respeita à segunda parte, também já temos a receita para estoirar com tudo.
E, mesmo que o suicídio colectivo não se consumasse, a verdade é que, no meio deste desencadear de instintos, no meio desta exibição grotesca e macabra da prepotência e do orgulho humano, que só no fratricídio se comprazem, Deus, na iminência de se desacreditar, deve sentir porventura a necessidade suprema de provar aos homens que tem mais poder do que eles. Seria talvez a única forma de fazer renascer na Terra o temor de Deus.
E eu chego a crer que não vale a pena adiar o cataclismo, porque, se não fossem certas manifestações de espiritualidade e de beleza no género da epopeia de Sidónio Pais, se não fossem estes raios de intensa luz, cada vez menos frequentes, a rasgar de quando em quando a treva da existência, seria de facto insuportável a vida no planeta.
E é curioso; dir-se-ia que Alfred de Vigmy, ao enunciar aqueles atributos, humanos, indispensáveis para que o nosso mundo seja habitável - a lealdade, a candura, a abnegação, a honra, a dignidade, o amor -, entreviu nas brumas do porvir uma figura à imagem e semelhança de Sidónio Pais.
Senão, analisemos em detalhe:
A lealdade. - Foi esta, com efeito, a sua virtude essencial, aquela que inspirou todos, os actos da sua vida. Bem poderia Sidónio enfileirar, sem desdouro, nessa teoria gloriosa dos grandes cavaleiros medievais.
Entre os alcaides da l.ª dinastia alguns há que se parecem com ele. Martim de Freitas, por exemplo, ao defender a praça de Coimbra contra tudo e contra iodos, foi tão pertinaz na fidelidade ao seu rei como Sidónio na sua lealdade à República.
O próprio Gonçalo de Faria, ao cair traspassado pelas lanças castelhanas sobre o terrapleno de combate do seu castelo roqueiro, quando fez a última exortação a seu filho, não foi maior do que Sidónio ao murmurar no derradeiro alento: «Morro bem, salvem a Pátria!».
A candura. - Por mais paradoxal que pareça, não é fácil encontrar num homem uma alma cândida como a sua. Só comparável à do povo português, de cuja bondade imanente o herói nunca descreu.
Sidónio ignorava totalmente o grande mal do nosso tempo, o mal que invade toda a escala social, o mal que paralisa o pensamento contemporâneo: a cobardia moral.
Ele confiava cegamente na sua estrela e na gratidão do povo pelos seus altas desígnios.
Como Miguel de Unamuno, ele poderia dizer, com o mesmo sorriso desiludido e melancólico: «Eu pertenço ainda ao número dos incautos que se propõem salvar o género humano sem conhecer os homens».
A abnegação. - Na sua vida e aia sua morte, na sua actividade oficial como na sua actuação privada, ninguém mais abnegado do que Sidónio Pais.
Muitas vezes ao menor prenúncio- de alteração da ordem, enquanto a cidade dormia, Sidónio velava, percorrendo à noite as ruas de Lisboa, montado no seu cavalo branco, sem escolta e sem séquito.
Foi assim que ele tombou sobre o front da defesa social, na luta cruenta por um Portugal melhor.
A honra. - Sidónio só tinha uma palavra e nunca deixou de a cumprir. Quem o ouvisse prometer vê-lo-ia sempre realizar.
Nos tempos que correm, em que a firmeza às promessas contraídas não passa geralmente de um mito ou de uma blague, seria para desejar que o seu sistema desabroche e o seu exemplo frutifique.
Não se é honrado impunemente; a honra também paga os seus tributos.
A dignidade. - Sidónio Pais lançou em torno do seu busto airoso a banda das três ordens, que até então só os reis tinham usado. Mas Sidónio era um rei!
Poderiam acusá-lo de coquetterie. Não importa; a sua dignidade ingénita de cavaleiro fadado para altos destinos imunizava-o por completo do ridículo.
Sidónio Pais tinha sobretudo a dignidade da sua intrepidez. E aos bravos todo o orgulho é lícito; aos bravos de lei toda a coquetteria se releva e até por vezes nos enternece.
Isto, é claro, quando a bravura não se traduz numa falta de dignidade; porque há também qualquer coisa de bravo naquela audácia impudica como certas pessoas se apresentam na rua com um escarro na cara.
Finalmente, o amor. - Amar e ser amado era o supremo anseio da sua alma comunicativa, eternamente enamorada. E esse desejo ardente realizou-o Sidónio Pais como ninguém. Amou profundamente o seu povo o foi amado por ele com a mesma intensidade. E assim tinha de ser, porque a corrente de simpatia que se gera entre as multidões s o seu caudilho, a acção magnética