DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 152 590
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: -Sr. Presidente: o ilustre Deputado Sr. Dr. Bustorff da Silva fez uma classificação a que não podemos chamar política, porque não têm esse significado usual as expressões que empregou.
E, aceitando-a, não tenho dúvida em declarar-me filiado na "esquerda", no sentido de aspirar, cada vez mais, a uma liberdade: a liberdade contratual nos arrendamentos logo que as condições do problema da habitação o permitam, o que Deus permita seja dentro de pouco tempo.
Também não me importa a classificação no sentido de entender que, quanto maior for a simplicidade na forma de realização dos contratos, melhor vamos satisfazer as aspirações e os interesses daqueles que, pela sua ilustração modesta, simplicidade de vida e costumes, dificuldades especiais, etc., preferem, se não exigem, soluções simples.
Eis a razão por que eu, quando anteontem se abriu acalorado debate sobre a forma do contrato, enfileirei ao lado da "esquerda".
O caso da forma do contrato merece realmente particular atenção e há vantagem em esclarecê-lo perante aqueles de V. Ex.ªs, que, por exercerem profissões e actividades estranhas ao foro, não têm possibilidades de dedicarem a estes assuntos um estudo tão amplo que lhes permita distinguir entre o melhor e o pior.
O regime do Código Civil, do Código que, com os seus oitenta anos, ainda é um monumento, era o do contrato verbal.
Contrato pura e simplesmente verbal, porque nas disposições relativas ao arrendamento não exigia qualquer formalidade e o artigo 686.º estabelece que a forma externa dos contratos não carece de normas especiais, a não ser nos casos expressos na lei.
Porém, logo nos primeiros tempos do Governo Provisório da República, ainda no rescaldo da revolução, foi publicado o decreto de 12 de Novembro de 1910, em que se passou para o extremo oposto, exigindo-se o contrato escrito. E não se ficou por aqui, pois exigiu-se o reconhecimento autêntico ou autenticado, nos termos do § único dó artigo 2436.º do Código Civil. Nem mais nem menos...
Para a hipótese de não haver notário na freguesia, estabeleceu-se uma forma mais simples de reconhecimento.
A mesma orientação, para certos casos atenuada, foi mantida nos decretos n.º 4:499 de 18 de Novembro de 1910 e noutros; e o 5:411 exige o arrendamento escrito, mas sem necessidade de reconhecimento, e permite-o verbal quando a renda mensal seja inferior a 2$50.
Perguntarão V. Ex.ªs: qual foi o intuito do Governo Provisório e dos imediatos com a exigência do contrato escrito ?
O intuito não foi, ou não foi especialmente encontrar a melhor solução, ou atender a situações gravosas resultantes do regime de contrato verbal, ou beneficiar os arrendatários.
O que predominou foi o critério fiscal. E a prova está em que, logo no artigo 2.º do decreto que tornou obrigatório o arrendamento escrito, se determinou que o contrato devia ser feito em triplicado e se destinou um exemplar, devidamente selado, à repartição de finanças. O mesmo determina o artigo 46.º do decreto n.º 5:411, ainda em vigor nesta parte.
Era esta a posição antes da lei n.º 1:662, de 4 de Setembro de 1924.
E quais os resultados do sistema ? Como se revelaram eles no decurso daquele tempo?
Praticamente, deste modo: a não ser em Lisboa e, em parte, no Porto e noutras cidades, o desprezo completo pela lei! Na província raras vezes os contratos de arrendamento são reduzidos a escrito. E por duas razões: a primeira, a fuga ao imposto, necessariamente aumentado em resultado da actualização da matriz, derivada da remessa do exemplar do contrato à Fazenda; a segunda é a lei do menor esforço e o proverbial desmazelo de muitos, mesmo com prejuízo dos seus interesses próprios. E as complicações da fórmula anteriores ao decreto n.º 5:411 fizeram o resto.
Por outro lado, muitos senhorios, baseando-se na falta de título, de que por vezes eram os culpados, e até na falta de reconhecimento autêntico ou autenticado ou de cumprimento de qualquer outra formalidade, serviram-se largamente do expediente das acções de reivindicação para obterem o despejo.
Antes da lei n.º 1:662, o caso foi muito frequente; e, em presença do rigor da lei, os inquilinos não tinham defesa possível.
Surge a lei n.º 1:662, e, no artigo 4.º, providencia sobre a falta de títulos de arrendamento, admitindo a prova deste por qualquer outro meio quando a falta for imputável a negligência, coacção, dolo ou má-fé do senhorio. E depois o decreto n.º 22:661, de 13 de Junho de 1933, tornou esta disposição extensiva, no seu benefício, ao senhorio, isto é, permite o reconhecimento da existência do contrato por qualquer outro meio de prova, quando a falta for imputável ao senhorio ou ao arrendatário. E bem, porque não se justificava uma solução unilateral.
A proposta que originou a lei n.º 1:662 foi discutida na Câmara dos Deputados em Agosto de 1924.
Não intervim nessa discussão por motivo de doença, mas compulsei o Diário das Sessões e notei que nem nos pareceres das diversas comissões nem em todo o debate houve a mínima referência à matéria do artigo 4.º em referência.
A forma do contrato não foi discutida; não encontrei sugestões de qualquer Deputado a este respeito. Nem tão-pouco, pelo menos nos discursos dos Deputados, encontrei referência à votação do artigo ou semelhante. Parece ter surgido misteriosamente de um alçapão, por artes que não me foi possível descobrir...
E devo dizer em nome da verdade que vários Deputados, como os Drs. Almeida Ribeiro, Pedro Pita, Ginestal Machado e outros, tiveram intervenções no bom sentido, a par dos meus queridos companheiros da minoria monárquica Morais Carvalho e Carvalho da Silva.
E tão acalorada foi a discussão que na sessão de 12 de Agosto o Deputado Sá Pereira, zelando pela integridade da mobília, exclamou para um colega mais impetuoso :
- "Não parta a carteira!"
Ao que o orador replicou:
"Ganhei, dentro da República, o direito de partir pelo menos a minha!" ...
Lapidar privilégio das democracias!...
Com o regime da lei n.º 1:662 teve-se em vista precisamente corrigir os inconvenientes resultantes da falta de cumprimento das disposições legais anteriores sobre a forma do contrato. Mas, de facto, veio agravar, até certo ponto, o mal existente.
Sistema híbrido e inconsistente.
A falta de arrendamento escrito pode ser suprida por qualquer outra prova, e portanto por testemunhas, isto é, pela maneira mais arriscada e falível, como, infelizmente, se revela a cada passo.
E como concretizar a culpa que geralmente não se consubstancia em factos?
Por isso, antes daquele decreto n.º 22:661, os inquilinos tinham dificuldade em demonstrar a culpabilidade dos senhorios; e, a partir dele, também os senhorios se encontraram no mesmo embaraço.
Dai o expediente em voga da notificação para o comparecimento perante o notário, a fim de aí ser celebrado o contrato; e, no caso de recusa, a elaboração de um instrumento de carência.