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27 DE ABRIL DE 1951 937

mas pela sua projecção na vida política (sobretudo o último) e mental do seu tempo.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Não são as ideias de que foram portadores que nós glorificamos, ainda que não seja difícil deletreár, nos seus discursos, as ideias mestras de regeneração política e social que, depois de muitas vicissitudes graves, vieram a triunfar nos altos domínios da governação pública.
Glorificamos dois nomes ilustres que nos precederam nesta Casa e honraram com o esplendor do sen talento esta tribuna, a mais alta do Pais, e cujas atitudes para com a Pátria Portuguesa, que serviram, na sua isenção, na sua nobreza e na sua dedicação, nos seus propósitos de engrandecer e prestigiar, merecem ainda o nosso respeito e o do Pais.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Mas sobre isto eu vou dar a palavra aos Srs. Deputados João Ameal e Lopes de Almeida, que, como membros da comissão, foram incumbidos de assinalar, com o relevo que a Câmara conhece, a inauguração que hoje se realiza e evocar, embora fugidiamente, como o momento impõe, aqueles dois nomes ilustres da nossa história política e da eloquência parlamentar em Portugal.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Dou a palavra em primeiro lugar ao Sr. Deputado João Ameal. Peço a V. Ex.ª que suba à tribuna e aos Srs. Deputados que se conservem nos seus lugares.

O Sr. João Ameal: - Sr. Presidente: não penso de modo algum em traçar aqui o perfil de António Cândido, a quem agora se presta nesta Assembleia merecida homenagem.
O meu único intuito - já que fui escolhido para fazer parte da comissão parlamentar encarregada de dar seguimento à iniciativa do meu querido e ilustre colega Dr. Paulo Cancela de Abreu - é sublinhar, em rápido esboço, as duas ordens de razões que nos impõem, o dever de consagrar e admirar tanto o orador como o homem público. Razões de sempre, quanto ao orador. Quanto ao homem público, razões de ontem, que parecem de hoje, e nos abrem perspectivas bastante novas sobre o seu papel na vida do País há pouco mais de meio século.
Começarei, logicamente, pelas primeiras.
Entre a larga variedade de tipos de oradores que conheço há dois modelos extremos: o pensador, cujo objectivo fundamental é exprimir ideias, formular directrizes, apontar caminhos, com a inteira noção das responsabilidades e o pudor dos efeitos demasiado fáceis, empenhado, quando fala, em praticar, sobretudo, um acto de inteligência - a esse dou, confesso-o, a minha preferência absoluta; e o demagogo, isento de limitações e de escrúpulos, confiante nos recursos de um engenhoso malabarismo verbal, unicamente preocupado em despertar ou explorar as paixões baixas do auditório por meio de lisonjas, de promessas e de ameaças, indiferente à veracidade como ao bom senso, ao equilíbrio como à justiça - e esse, declaro, só me inspira a mais completa repulsa.
António Cândido pertenceu a um terceiro modelo, muito da sua época e agora dia a dia mais raro: o do orador-artista. Cada um dos seus discursos era um trabalho primoroso, cuidado em todas as minúcias: beleza e justeza da linguagem, graduação dos efeitos, harmonia das proporções. Ele mesmo se definiu nos trechos seguintes do prefácio ao volume Discursos e Conferências:

A eloquência é verdadeiramente uma arte. Não considerando as qualidades externas do orador, que são absolutamente imprescindíveis, é positivo que a eloquência corresponde a uma faculdade intelectual e a um ideal estético, cuja existência é necessária para o especialíssimo ofício da palavra humana.

Completem-se estas linhas tão claras, que equivalem quase a um auto-retrato, com os depoimentos de contemporâneos seus. «Foi» - resume um deles, o Dr. Joaquim Costa - «o grande plástico da palavra. Deu-lhe relevo e estrutura musical; deu-lhe claridade e ternura. Afeiçoou-a para que exprimisse fortemente os lances da epopeia e da história e comunicou-lhe o vago imponderável dos sonhos, para que pudesse servir às fugas subjectivas do pensamento». Outro biógrafo, o escritor João Grave, descreve nestes termos o efeito que lhe produziu vê-lo falar certa noite no Teatro de S. João, do Porto, numa sessão comemorativa do descobrimento do Brasil:

Tive a impressão de que à volta da cabeça do orador fulgurava um radiante nimbo. Todo ele resplandecia. Era conjuntamente um poeta de inspiração inexaurível e um actor eminente...

Assim o vejo também, eu que não cheguei a conhecê-lo e a ouvi-lo: orador-artista com todos os prestígios e todas as características do tipo humano que superiormente representava. Vejo-o, como um caso de grande sensibilidade e de autêntico sortilégio pessoal, a encantar e a dominar assembleias pelas harmonias da dicção e do gesto, pela fluência soberana do verbo, pelo dom de engrandecer tudo a que se referia.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Se ainda hoje se podem ler com gosto as páginas dos livros que deixou, esses discursos acusam, todavia, como é natural, a usura do tempo: o seu difuso idealismo, influenciado em demasia pelos mitos filosóficos e literários de Oitocentos, já está distante de nós e o seu estilo, um tanto solene, parece-nos, às rezes redundante e enfático.
Claro que lhes falta o maior dos elementos valorizadores: a presença de António Cândido, com a majestade da sua cabeça melancólica, a doce gravidade da sua máscara, a limpidez dos seus olhos sérios, onde havia a familiaridade com os amplos horizontes serranos, o timbre da sua voz dominadora. Tudo isto lhe conferia o dom de comunicar, de persuadir, de estabelecer um fluido de adesão e de entusiasmo entre os ouvintes subjugados.
Prodigioso fenómeno constituído pela dádiva completa de um homem - em fervor de espírito e vibração de nervos - ao tema que versa e ao ascendente sobre quem o escuta, chega ao ponto de impor uma unidade instantânea a centenas ou a milhares de pessoas e as curva, dóceis e absorvidas, ao império do artista que fala!
Sim, a presença de António Cândido - ainda hoje, como então, viva nesta Casa - deve ter sido, realmente, um espectáculo inesquecível!
E não apenas pelos fulgores da sua oratória, também porque nele se sentia o culto de valores mais altos.

Vozes: - Muito bem!