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938 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103

O Orador: - Se considerava a eloquência uma arte, como já vimos, não se esquecia de salientar, logo adiante, a sua necessária subordinação «à suprema lei que regula todas as manifestações da estética»: a lei moral. E mais longe apontava como intenção primordial do orador «contribuir directamente para os fins elevados e úteis da nossa espécie».
Estas nobres directrizes - que lhe haviam porventura ficado, como nostálgico resíduo, da fase em que tivera o púlpito por tribuna - encheram-lhe as orações de um sabor e de um valor particularmente apreciados pelos seus contemporâneos.
Num meio agitado por lamentáveis paixões e discórdias, em que tantos faziam da palavra mero instrumento de ambição, de verrina, de mentira, de calúnia, de polémica, a dignidade do homem que a usava ao serviço de causas superiores tinha de impor-se. Ouçamos esta bela profissão de fé em que António Cândido expõe os motivos que o levaram a querer abandonar, a certa altura, a cena política e condensa a sua oposição à turva atmosfera da época, isto é, em que resume a sua maneira de (como dizia o verso camoniano) andar «só por entre a gente»:

Não sou lutador violento por índole. Detesto a intriga por orgulho. Não sou ambicioso, porque me conheço incompetente para quase todas as coisas, e sei, além disso, que a vida falta quase sempre às suas melhores promessas.
Sacrifico voluntariamente uma parte da minha liberdade à disciplina partidária, mas não lhe sacrificaria nunca a consciência e o coração; e este formidável Moloch, este deus terrível das religiões políticas, não se contenta com menos de tudo!
Com uma antipatia dolorosa, invencível, pela habilidade, quando ela não serve um alto pensamento de qualquer ordem, sinto-me atormentado se não vejo claramente a origem, o processo e o fim das coisas a que tenho de prender a minha responsabilidade individual.

É este António Cândido exilado e sobranceiro, como os melhores entre os seus pares - como Herculano, por exemplo, com quem tem afinidades evidentes -, este António Cândido consumido na devoção aos ideais e no desgosto ante as pobres lutas quotidianas em que esses ideais se degradavam e prostituíam, a imagem a guardar na nossa lembrança. «Homem de bronze», como alguém chamou ao seu irmão historiador, em bronze lhe cumpre ficar, junto de nós - expoente de génio oratório e, simultaneamente, de saudável intransigência moral!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas se quisermos, após a visão sucinta do homem um pouco sub specie aeternitatis, na sua posição intemporal diante do mundo, da vida, da sociedade que o cercava, tentar surpreendê-lo no domínio concreto da sua existência e da sua actividade, observaremos a coerência do idealista e do estadista. Basta evocar as suas relações de intimidade e aliança com outro dos vultos maiores da nossa galeria intelectual e política da segunda metade do século XIX: Oliveira Martins.
Culpado, sem dúvida, como autor desse panfleto deformador que é a sua História de Portugal, saída em 1879 - já nas dramáticas interrogações que encerravam a obra e, ainda mais, nos fortes e lúcidos capítulos do Portugal Contemporâneo, dado a público dois anos mais tarde, Oliveira Martins ultrapassava o estádio do desalento, da descrença, da negação, para compreender e honrar o dever urgente de entregar-se a uma viril tentativa de restauração nacional.
Pouco tempo depois, por 1885, esboçava o programa que presidiria ao movimento chamado da Vida Nova - programa de largas reforma sociais, económicas e ultramarinas, a executar por um Governo autoritário sob a égide da coroa, um pouco segundo a inspiração recebida do regime então existente na Alemanha e cujos protagonistas eram o imperador Guilherme I e o chanceler de Bismarck.
Aos desígnios de Oliveira Martins aderiram alguns parlamentares, aristocratas e homens de letras - que preponderaram no famoso grupo dos Vencidos da Vida.
Habituámo-nos, até certa altura, a considerar os Vencidos como simples bando elegante e frívolo, o «grupo jantante» da síntese já clássica de Eça de Queirós, unicamente desejoso de estreitar um convívio intelectual e mundano e ao mesmo tempo divertido com a estranheza e a irritação provocadas no burguesismo lisboeta.
À luz dos estudos e documentos publicados nos últimos anos é fácil descobrir, por detrás dessa fachada superficial, um pensamento e uma intenção muito mais sérios: o de ir além da crítica ou da ironia ante o marasmo circundante e promover, resolutamente, um impulso nas estradas da Vida Nova.
Ora os fundadores, por assim dizer, do grupo dos Vencidos foram o par do reino conde de Ficalho e três Deputados que, uma tarde, com o primeiro jantar no Tavares, deram início às suas reuniões: Carlos Lobo de Ávila, Oliveira Martins e António Cândido. Isto ocorreu entre os fins de 1887 e os princípios de 1888.
Vários amigos se lhes juntaram, de acordo na condenação de uma política apática e suicida, empenhados no propósito de buscar outros métodos e outros horizontes: Eça e Ramalho, os palacianos conde de Sabugosa, Luís de Soveral (ainda então não agraciado com o título de marquês) e Bernardo Pindela, que seria o conde de Arnoso.
Asseguravam estes a ligação dos Vencidos com o príncipe herdeiro D. Carlos - em quem todos punham as máximas esperanças e que, transposto o mole e brando reinado de D. Luís, olhavam como penhor de um despertar da realeza para as responsabilidades da sua histórica função nacional.
António Cândido, nos quadros da Vida Nova, que incluía a maior e melhor parte dos Vencidos, não se limitava, porém, a mero papel de comparsa. Era um dos corifeus. No seu notável discurso de 15 de Julho de 1887, proferido na Câmara, ao falar do constitucionalismo liberal, afirmara sem eufemismos:

A vida política portuguesa considero-a como degeneração psicológica de um sistema que nunca pôde aclimatar-se e desenvolver-se em Portugal.

Não vacilara mesmo em dizer que, ao estudar a ditadura, não nos livros didácticos, mas na história do País, a vira sempre e em tudo através das ficções aparentes que a disfarçavam. E concluía com mordacidade e desassombro:

Se não tivesse receio de melindrar... diria até que a ditadura aberta e franca é... a única forma útil que a política tem assumido entre nós.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nada me admira que o tribuno se encontrasse com outros grandes espíritos na ânsia de ver surgir a ditadura salvadora - não a de qualquer César, improvisado, mas a nacional e legítima ditadura consagrada pelas eloquentes lições da história: a ditadura do rei!