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940 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103

Eu não sou orador, sou modestíssimo amador da Língua Portuguesa que procura exprimir-se com alguma correcção e sempre temeroso de a macular na sua natural e vernácula limpidez. Admiro, porém, os que falam com espontaneidade e graça, com flexibilidade e colorido, com serena plasticização das ideias na forma mais símplice e transparente. Admiro a eloquência dos outros e às vezes tenho pena que Deus não me haja fadado assim.
Esta nobre Casa ouviu durante muitas e muitas décadas erguer-se da tribuna, com acentos da mais alta inspiração e vivacidade, o verbo de eminentes parlamentares e soar com majestade e fineza a doce fala que é nosso património inauferivel. No último quartel do século passado ainda perduravam os ecos das vozes càlidamente arrebatadoras de Garrett, de José Estêvão, de Rebelo da Silva, e guardava-se como tradição parlamentar o fino gosto da oratória tribunícia, que tinha cultores apaixonados e veementes. Hintze Ribeiro foi um dos derradeiros, pela precisão das ideias, pela firmeza dos princípios e pela nobreza da palavra.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Presentemente, a última hora da eloquência parlamentar, e também a do pretório, parece que vai soando no Mundo, e a causa não sei se está na decadência e no descrédito das instituições parlamentares reconhecidos por esse mundo além, se no tecnicismo exagerado e limitativo das tendências espirituais que pouco a pouco procura substituir o culto e o amor das ideias gerais.
Por isto mesmo é que tantos homens buscam num humanismo novo a ideia alta e estimulante que limite a sequidão da alma e do espírito tão generalizada no mundo moderno, que é obra em grande parte do filosofismo setecentista.
A gente do século XIX sentiu-se herdeira de um acontecimento transcendente da vida da humanidade e também propugnadora acérrima das ideias e dos factos verdadeiramente imprevistos que esse acontecimento originou no Mundo. Factos imprevistos, porque a Revolução Francesa não foi somente um grande acontecimento político que se repercutiu e repercute ainda no âmago de todas as nações, mesmo as mais distantes; não somente um grande acontecimento social que trouxe à sociedade humana novos problemas, por vezes bem difíceis de resolver, mas porque foi também na ordem psicológica um facto considerável, como que o final de um capitulo da vida da humanidade pensante e o começo de outra vida nova.
Sem querer, nem tentar sequer, fazer aqui o processo da evolução mental e espiritual dessa época, arrisco todavia uma pergunta: em que consistiu essa mudança?
Nos séculos precedentes os povos deixavam-se conduzir mais ou menos pela tradição ou sequer pelo espírito de tradição. Adoptavam sem dificuldade os usos e costumes de seus maiores, com sentimento mais ou menos nítido de que isso era o que melhor convinha à hora que viviam. É difícil concebermos hoje a feliz placidez dessas existências burguesas e aristocráticas, que volteavam num círculo de ideias bastante restrito, mas que encontravam numa existência bem organizada com que satisfazer as inspirações nativas.
Este equilíbrio feliz, e que nós talvez não sejamos já capazes de apreciar, deu lugar inopinadamente, sob o influxo do espírito filosófico, a uma inquietação bem profunda.
As gentes daquele tempo devem ter realmente sentido tremer o solo debaixo dos pés, pois todas as bases da sociedade foram fendidas, todo o futuro, tão caro ao espírito conservador, pareceu comprometido, tudo o que se amava e desejava e sonhava tinha de ser tecido com nova trama.
Desde então o grande movimento dos espíritos fez participar, pelo menos neste nosso mundo ocidental, todos os povos das mesmas noções gerais e das mesmas tendências espirituais e políticas.
Portugal, naturalmente, não ficou alheio a essa forte mutação de estrutura social e política, e desde então começou a subir o calvário, que durou mais de um século, com uma sequência ininterrupta de crises de indisciplina e de incapacidade política.
Nós, os homens de cinquenta anos, vivemos ainda os últimos, mas nem por isso os menos trágicos e dolorosos, estádios desse drama interno em que se opunham duas concepções políticas irredutíveis como provindas de diferente natureza.
E também a nós é difícil concebermos hoje o sentido de alguns acontecimentos da vida nacional de há meio século e o despeito de muitos homens cuja actuação condenamos irremissivelmente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: eu tive de fazer um esforço verdadeiro de recuperação do passado para poder situar no seu plano a figura do conselheiro Hintze Ribeiro e tentar compreender a sua época com alguma segurança. E tive de fazê-lo, porque não é fácil aos homens da minha idade aperceber sem estudo o conjunto de circunstâncias de ordem moral e política em que decorreu a vida portuguesa do último quartel do século XIX.
Todos ouvimos falar em progressistas e regeneradores e dissidentes, todos ouvimos condenar a generalidade dos homens e atitudes, e a noção última com que ficámos nos alvores da nossa vida de razão foi que ninguém se salvava naquele final de século, nem pela honra, nem pela inteligência, nem pela fidelidade à causa da monarquia.
No seio de nossas famílias ouvimos, é certo, pronunciar alguns nomes com algum respeito, mas também aí se ouvia só o nome daqueles a quem nossos parentes seguiam e escutavam como chefes de partido.
Eu nasci numa casa de gente pobre e modesta, mas onde se cultivavam - e cultivam ainda, graças a Deus! - dois sentimentos imensamente respeitáveis: o do amor a Deus, timbre da nossa nobreza espiritual, e o da fidelidade aos princípios que há mais de oitocentos anos deram à Nação Portuguesa o seu primeiro chefe indiscutível.
Por ambos me tenho batido sem nunca voltar a face e por ambos alguns dos meus se sacrificaram alguma coisa. E já agora, que vou descendo a outra encosta da vida, espero confiado e sem medo de algum dia os renegar.
Isto não é muito nem é nada, e se nisto falo é unicamente para poder arriscar um juízo com objectividade, mas não com indiferença, sobre essa nobre figura que foi o conselheiro Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro.
Desprendo-me inteiramente de evocar perante a Assembleia as circunstâncias de ordem pessoal e política que conduziram Hintze Ribeiro ao primeiro plano da vida pública portuguesa, para só aludir àquilo que me parece ser o essencial e distintivo da sua personalidade - a inteligência, a dignidade, a honradez e fidelidade.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Hintze Ribeiro afirmou-se desde muito novo como inteligência lucidíssima e altamente compreensiva, servida por duas qualidades sem as quais não há verdadeira cultura - probidade e modéstia. Ele foi no seu tempo um homem que soube reduzir a antinomia entre a contemplação e a acção, isto é, preparar-se com suspicácia e dúvida para encontrar em si as virtualidades empreendedoras.