618 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 83
É geralmente de milho e milhinhos, de arroz, de mandioca, de batata doce, de medula de cana sacarina, de mel ou da polpa de muitos frutos que os nativos fazem líquidos fermentados, impropriamente chamados vinhos, visto não passarem, respectivamente, de autGnticos tipos de cerveja, hidromel e cidra; também ingerem seiva de palmeiras dendô, de coco e de outras, normalmente obtida por meio de incisões abertas nos pedúnculos das respectivas inflorescôncias.
As bebidas cafreais tanto podem ser deglutidas recém-fabricadas como algumas horas depois; a demora de ingestão eleva o grau alcoólico, motivo por que estes líquidos são mais queridos dos indígenas, embora menos inebriantes do que a vulgaridade dos nossos vinhos comuns, e que só provocarão embriaguez se forem tomados em quantidades muito exageradas.
Eu próprio tive muitos ensejos de provar estes líquidos cafreais confeccionados para uso gentílico - cujos nomes vernáculos e particularidades de fabrico não trago para aqui só para não alongar mais a minha exposição - e confesso que os achei com fraca graduação etílica e agradáveis ao paladar, recomendando-se principalmente pelas suas propriedades nutritivas.
E quanto aos vinhos de palmeira dendê e de coco, considero-os deliciosos e saudáveis quando recolhidos durante a noite e saboreados frescos de manhã cedo, ocasião em que lembram o champanhe, se bem que quase desprovidos de álcool.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sendo assim, porque se julgam tão inclementemente as bebidas cafreais fermentadas? Às razões são fáceis de apreender: se o indígena, naturalmente imprevidente, converter em líquidos alcoólicos os produtos que constituem a base da sua alimentação, pode vir a ter fome pelo ano fora, ficando, consequentemente, enfraquecido e incapaz de desenvolver um esforço maior, expondo-se a contrair toda a casta de doenças, que podem não apenas molestar o respectivo portador como contribuir para a degenerescência da tribo.
Porém, não são as bebidas fermentadas puras que despertam com frequência o aparecimento dos referidos quadros mórbidos, mas tão-somente aqueles líquidos a que forem adicionados ingredientes de efeitos excitantes e nocivos de vária índole; tão-pouco as seivas de palma e do coqueiro, frescas ou pouco retardadas, embriagam e prejudicam tanto a saúde como se tem propalado - nas possessões francesas da África Ocidental o vinho de palma figura obrigatoriamente nas ementas diárias dos indígenas, e em todas as regiões onde abundam as palmeiras e a respectiva extracção não está interdita é utilizado por nativos e europeus, correntemente e em maior ou menor escala, sem qualquer inconveniente. Todavia, deve acrescentar-se que outros motivos levam a dificultar a sangria das palmeiras dendê e de coco e o emprego de géneros alimentícios: se as palmeiras produzirem vinho, não dão óleo ou copra - dois géneros de exportação com apreciável importância económica-, contrariando-se o fabrico de vinho de milho, de arroz e de mandioca por análoga razão.
E como os povos culturalmente atrasados adoram os líquidos alcoólicos fermentados - sempre os confeccionaram através dos tempos e, sejam quais forem as providências restritivas que se decretem, eles persistirão em prepará-las e bebê-las -, só uma maneira de agir é aconselhável: facilitar-lhes o uso do vinho europeu a preços convidativos.
Já a mesma opinião eu não poderia emitir a respeito do vinho feito «a martelo» (o célebre vinho de preto), com álcoois e ingredientes perniciosos, nem das bebidas destiladas, simples ou adicionadas de matérias mais ou menos tóxicas, sejam ou não fabricadas pelos indígenas, pois tanto afectam a saúde quando ingeridos correntemente em altas doses.
Com excepção dos nativos praticantes do islamismo (que se contam por muitos milhares na Guiné Portuguesa, Norte de Moçambique e Estado da Índia) e do protestantismo (em Angola o Moçambique), rigorosamente abstémios, todos os pretos sabem fabricar bebidas etílicas fermentadas, e a maior parte deles manipula um alambique para obter aguardentes destas ou de macerados de frutos diversos, colhidos na floresta.
Para esta operação bastam-lhes duas panelas de barro, que unem pelas aberturas, justapondo-as hermòticamente com auxílio de argila fresca: de um pequeno orifício feito no recipiente superior parte um tubo (de cana, cano de velha espingarda, etc.), que mergulha em água fria, contida em larga selha de madeira, saindo depois através da parede. Sob a panela inferior arde uma fogueira, lentamente, e o vapor de água etilizado, condensando-se ao passar pelo tubo envolvido em água, cai em gotas numa cabaça.
O fabrico e o comércio de bebidas destiladas, de harmonia com as conferencias de Bruxelas de 1899 e de Saint-Germain-en-Laye de 1919, estão proibidos entre os indígenas do nosso ultramar, sendo os prevaricadores activamente perseguidos e castigados com pesadas penalidades, impostas pelas autoridades administrativas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: os sociólogos afirmam que, de uma maneira geral, a humanidade faz uso das bebidas inebriantes com o intuito de obter boa disposição física e espiritual, em demanda de ilusória felicidade, encontrada no fugaz esquecimento ou alívio das influências depressivas do ambiente que a rodeia, libertando-se das fadigas, aborrecimentos, misérias e tristezas da vida ...
Sem distinção de roça ou de cor, todos os homens, excluídos os observadores de certas seitas religiosas, gostam de líquidos alcoólicos, e os habitantes de Angola e Moçambique e das outras províncias ultramarinas portuguesas fabricá-los-ão, se não lhes facultarem meios propícios de adquiri-los aos Europeus.
Jamais se arredará da minha memória a atitude quase ritual em que os componentes de um pequeno grupo étnico do deserto do Moçâmedes se serviu de vinho que lhes ofereci: de cócoras, homens, mulheres e crianças, velhos e novos, ingeriram o líquido, paulatinamente, olhos em êxtase, emitindo no fim sons interjectivos de profundo contentamento, acompanhados de movimentos com as mãos, passadas lentamente sobre o tórax e o abdómen!
Por isso, na impossibilidade de impedir-se inteiramente que os nativos tomem as bebidas por eles preparadas, actuemos no sentido de substituí-las pelos nossos vinhos, diligência que, satisfazendo o gosto dos interessados, igualmente concorre, e de maneira decisiva, para o bem-estar dos vinicultores e para a economia geral da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - À semelhança da sugestão de dar vinho aos soldados durante as refeições, feita pelo Sr. Dr. Paulo Cancella de Abreu e a qual apoio calorosamente, preconizo a inclusão de certa quantidade de vinho comum nas rações alimentares dos trabalhares indígenas que manifestem este desejo; quantas dezenas de milhares de nativos empregados nus explorações agrícolas e industriais da África Portuguesa não receberiam de bom grado tal determinação! Se a cada nativo pudesse ser distri-