2 DE MAIO DE 1960 869
nos, estudou as rotas, as correntes, os ventos, as estrelas, o céu, e depois da empresa de Ceuta, da crista do Algarve, olhando o oceano infinito, decidiu que havia chegado a hora de os Portugueses desvendarem os seus horizontes e quebravam os seus segredos.
Mas o infante D. Henrique não foi apenas um homem de ideal e de fé. Foi também o organizador, o condutor de um empreendimento grandioso que exigia navios, capitães, tripulações adestradas, apetrechamento náutico, mantimentos, largas fontes de receita para assegurar o seu êxito e a sua continuidade.
As terras que primeiro se abriram à expansão portuguesa no Atlântico foram as ilhas que compõem o arquipélago da Madeira, dádiva de Deus ao infante, que delas veio a ter, depois, seu senhor.
A Madeira era terra virgem como nos recuados tempos em que, após as grandes convulsões geológicas, extintos o ruído e o fragor dos vulcões, ali ficou, com suas montanhas e crateras, firme e majestosa, bela e altaneira, para vir a ser, milénios depois, na vastidão do oceano, um dos grandes marcos na história, da verdadeira descoberta do Mundo.
Cobria-a, quando ali chegaram, nos fins do primeiro quartel do século XV, os navegadores do infante, um intuito espesso de verdura. Tudo era beleza, paz, quietude.
Pelas suas encostas desviam correntes de água cantante e cristalina, único murmúrio que ali st; ouvia e que ao reflexo do Sol criador pareciam fios de prata a embelezar aquele cenário de maravilha. Não existia alma viva nem vestígios ou passos de gente, os pássaros não fugiam do homem, na o se conhecia a maldade, dir-se-ia que era ali o paraíso terreno. E todas as lendas que se tinham criado à volta das belezas e dos encantos das ilhas que existiam no oceano ficaram muito aquém daquela realidade viva e pujante que emergia das águas aos olhos pasmados dos navegadores portugueses.
E o próprio mar era diáfano o transparente, calmo e tranquilo, cingindo amorosamente a terra nessas históricas manhas de revelação e de esplendor.
E o mar era assim e se nas suas rotas o cruzeiros não se deparavam os perigos que foram durante séculos o receio e o medo dos navegantes e, pelo contrário, as espumas das suas águas contornavam terras que eram riquezas e tesouros desconhecidos, porque não continuar o empreendimento para o sul e para o ocidente, aumentando o património da coroa e da fé de Portugal.
A descoberta, ou melhor, talvez, em rigor histórico, a redescoberta do arquipélago da Madeira, constituiu, assim, o primeiro prémio para. o infante de Sagres, cuja alma de lutador conhecera, grandes reveses e cujo espírito precisava de ânimo e do incitamento para, prosseguir um empreendimento que. sendo seu, era também e sobretudo, a própria tarefa da Nação.
Grande orgulho e glória para as nossas ilhas atlânticas poderem recordar agora que, há mais do cinco séculos, antes de contornada a costa africana, antes de encontrado o caminho da índia, muito antes do descobrimento do Brasil, animaram o espírito e o coração do infante, a quem se deveu o início e a concepção da nossa epopeia marítima.
Veio depois o povoamento e a colonização. E o infante, D. Henrique, preocupado com as campanhas do África, com a empresa dos Descobrimentos, com o aperfeiçoamento dos métodos de navegar, com os meios financeiros indispensáveis à efectivação dos seus objectivos, com a definição dos princípios a pôr em prática pura assegurar o convívio pacífico com as populações nativas da costa africana, abrindo, assim, vias estáveis de penetração à nossa influência comercial e espiritual, o infante de Sagres seguiu do perto o orientou a colonização da Madeira, para que esta fosse padrão imorredouro do nosso esforço e demonstração viva para todo o sempre das nossas qualidades reais de povoadores das terras descobertas.
Chegam os primeiros colonos, gente do Minho e do Algarve, incendeiam-se e desbastam-se arvoredos, aproveitam-se madeiras, constroem-se serras de água, as primeiras sementes à terra. O infante é informado dos prodígios da natureza, da benignidade do clima - Cadamosto havia de dizer poucos anos depois que ali não faz frio que se note, como na Sicília ou em Chipre-, e ali introduz a vinha, além da cana-de-açúcar. Já Zurara falava dos «vales todos cheios de açúcar, de que espargiam muito pelo mundo», e ainda em vida do infante o melaço e o açúcar da Madeira chegam nas nossas naus a portos do Norte da Europa. Anos depois o açúcar constituía objecto de um importante comércio que se estendia desde a a Flandres a Génova, a Veneza, até Constantinopla.
Algumas das culturas principais da Madeira, o seu comércio, o aproveitamento das águas, o sistema da colonização das terras, que vieram a desenvolver-se e a aperfeiçoar-se pelos séculos fora, deveram ao infante D. Henrique o seu impulso inicial. Ele que, como disse Oliveira Martins, restaurou da antiguidade fenícia e grega os resgates com os indígenas mas costas africanas, que restaurou, por igual, dos antigos o tipo das colónias feitorias, com a de Arguim, defendidas por uma fortaleza, que estabeleceu o tipo das companhias de navegação e comércio, como foram as de Lançarote - tipo que contribuiu para o início da fortuna colonial da Inglaterra e para a formação de uma nação viva, a Holanda -, criou na Madeira o primeiro tipo das colónias de emigração.
É o próprio infante que entrega a João Gonçalves Zarco um regimento para que na Madeira houvesse paz e justiça, que manda fazer o primeiro foral para esta ilha, que cria, depois, as capitanias, dando aos capitães donatários atribuições para superintenderem na administração pública local, que doa o poder espiritual à Ordem de Cristo, que institui no arquipélago o culto de Santa Maria, revelando, assim, as suas múltiplas preocupações de administrador, colonizador e servidor intemerato de Deus.
A empresa dos Descobrimentos foi maduramente ponderada e pensada pelo infante D. Henrique, e, entre as suas consequências, revestiram-se de grande importância as negociações que houve que entabular, nomeadamente com o Papa e com a cúria romana, para reivindicar direitos de prioridade relativamente às terras e mares descobertos. Era necessário barrar o caminho dos oceanos à ambição de nações estranhas, e por isso considerou de importância fundamental possuir no Atlântico determinadas posições que servissem de base e apoio à sua obra de expansão marítima. Isso explica as suas tentativas para se apossar das ilhas Canárias e a importância que desde logo se atribuiu aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, situados precisamente nas grandes rotas do Sul e do Ocidente.
Deram, efectivamente, aquelas ilhas atlânticas apoio importante às expedições que demandavam novos mares, contornando a África ou procurando terras ocidentais. A Madeira e os Açores haviam sido descobertos por navegadores do infante, possuidores do seu espírito, absolutamente integrados na mística da época. Ali se fixaram colonos portugueses, para ali se transplantaram instituições, hábitos e tendências da pátria comum, ali se estabeleceram os Franciscanos, difundindo o culto da natureza, a dignidade e a beleza