2 DE MAIO DE 1960 873
mente a duração das viagens em pleno oceano, longe da costa. A simples estima das distâncias percorridas aos rumos indicados pela bússola revela-se insuficiente para conhecer com um mínimo de precisão a posição do navio. Nasce, então, em condições ignoradas, mas ainda em tempos do infante, a primeira fase da navegação astronómica no Atlântico; pela observação dos astros passa a corrigir-se a estima do caminho norte-sul andado pelos navios. Ficava firmemente estabelecida a navegarão oceânica, apoiada por uma embrionária navegação astronómica susceptível de rápido desenvolvimento. Já possuidores de navios adequados, senhores de um conhecimento progressivo dos agentes físicos no Atlântico e mestres de uma técnica de navegação oceânica em que não havia o perigo de se perderem nas imensidões do mar, os Portugueses, ao morrer D. Henrique, tinham em sen poder a chave para a descoberta de todo o Mundo. Bastava audácia e fé, e estas não lhes faltavam. Uns dez anos depois do passamento do ilustre infante já estavam na Costa da Mina, e logo após ultrapassavam o equador.
Entrava-se no Atlântico Sul, desaparecia do firmamento a fiel Estrela Polar, surgiam novos sistemas de ventos e correntes. Aparecia o genial continuador do infante, o Príncipe Perfeito, e as novas dificuldades cedo são vencidas. Progride a ciência náutica, criam-se os primeiros regimentos de determinação da latitude a bordo, e com eles e com o primeiro embrião do almanaque náutico parte, em 1482, Diogo Cão com rumo ao Congo. Afamados cosmógrafos e grandes pilotos, como mestre José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira, efectuam febrilmente o primeiro levantamento moderno, por latitudes, da costa africana, legando-nos uma obra primorosa, que se pode ver no planisfério do Cantino e no Esmeraldo de situ orbis, e proclamando a nova verdade de que «a experiência é a madre de todas as coisas», Bartolomeu Dias, com caravelas, descobre o cabo e a zona dos ventos do oeste, verificando a simetria do regime das correntes de ar nos dois hemisférios, que permitirá traçar u genial rota paira os navios de pano redondo seguida por Vasco da Gama alguns anos mais tarde.
É a época áurea. Os navios portugueses cruzam o Atlântico em todas as direcções, Cabral vai ao Brasil e os Cortes Reais à Terra Nova dos Bacalhaus. Isola-se no firmamento austral o Cruzeiro do Sul e, dentro de poucos anos, Pêro Anes e João de Lisboa regimentavam-no para determinar as horas e alcear a latitude durante a noite. Fechava-se o ciclo da criação dos regimentos náuticos fundamentais e da carta graduada em latitudes, e com esses instrumentos os marinheiros europeus, portugueses e outros, iriam devassar, dentro em pouco, todos os oceanos do globo.
Em 1498, ao chegar a Melinde, Vasco da Gama encontrava-se com um piloto árabe que o conduziria, ao Malabar - e a quem os nossos cronistas denominaram de Mal em a Cana, sendo identificado pelos modernos historiadores como Ahmad Ibn-Madjid, o mais famoso piloto árabe do Indico em todos os tempos, dele se conservando nos arquivos europeus dezenas de tratados náuticos e roteiros, alguns dos quais, os de Leninegrado, recentemente editados pelo russo Chumovsky. Quis assim o destino que, ao fechar-se o século XV, se encontrassem precisamente, em circunstâncias únicas, num porto da África Oriental os dois mais categorizados representantes da ciência náutica do Ocidente e da ciência náutica do Oriente. Este encontro reveste-se de aspectos que lhe conferem o valor de um símbolo.
Os Árabes praticavam no Indico, e faziam-no desde há séculos, a navegação oceânica e utilizavam processos de navegação astronómica que oferecem notável paralelo com os que os Portugueses criaram nos tempos do infante D. Henrique. A sua ciência náutica, nesse aspecto, estagnara havia muito, e os portugueses de Vasco da Gama já lhes levavam larga dianteira nesses conhecimentos. É sintomático que num dos roteiros recentemente publicados, relativo à África Oriental e escrito já alguns anos após a chegada dos Portugueses ao Índico, Ibn-Madjid utilize, como claramente indica, elementos obtidos dos Lusitanos e exclame mesmo a certa altura, «agora a ciência e arte vêm dos Francos».
Isto é, o mais destacado elemento da ciência náutica oriental era o próprio a reconhecer a superioridade, nesse domínio, dos Portugueses recém-chegados. Creio que não pode haver mais claro testemunho do significado, na história da humanidade, da criação original de uma nova ciência náutica pelos Portugueses do que estas afirmações do Ibn-Madjid, o Leão dos Mares. Foi essa ciência náutica, símbolo do maior dinamismo da cultura ocidental, que levou os Europeus a penetrarem no Indico antes de os Asiáticos descobrirem os meios de chegarem ao Atlântico e colonizarem as suas margens.
Tal criação constitui o mais importante contributo científico de Portugal na história da humanidade. Alguns anos depois de o Leão dos Mares escrever o seu roteiro, que hoje se encontra em Leninegrado, Pedro Nunes, o mais afamado sábio português de todos os tempos, e que só universalizou precisamente pelas suas obras sobre ciência náutica, escrevia estas palavras: «Não há dúvida que as navegações deste reino de cem anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente do Mundo. Os Portugueses ousaram cometer o grande mar oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e novas estrelas... E fizeram o mar tão chão que não há quem hoje ouse dizer que adiasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos ou sequer algum penedo quo por nossas navegações não seja já descoberto».
Nesta passagem de Pedro Nunes ficou bem vincada a consciência nacional e o orgulho de ter criado o instrumento por excelência da expansão marítima e ultramarina portuguesa e depois da de outros povos europeus. Os regimentos náuticos Lusitanos foram integralmente adoptados pelas outras nações marítimas do Ocidente, em primeiro lugar pela Espanha. Quer através de traduções directas, quer indirectamente, através dos tratados de navegação espanhóis quer ainda pela prática e ensino conferido por numerosos pilotos portugueses ao serviço de outros países, é fácil verificar que até fins do século XVI os regimentos náuticos portugueses foram o guia dos marinheiros europeus que se lançaram nas aventuras da expansão marítima. O mesmo se verifica com os roteiros, pois também neste domínio os Portugueses foram grandes pioneiros e redigiram as mais antigas descrições das costas que descobriram ou foram os primeiros, entre os Europeus, a navegar. Passando ao domínio da cartografia náutica, tornaram-se os mestres consagrados durante largo período, levantando pela primeira vez algumas dezenas de milhares de quilómetros de costas descobertas. A colecção de cartas náuticas portuguesas, que hoje ainda existe, e quo não passa, aliás, de uma ínfima parte da assombrosa produção nacional dos séculos XV e XVI, não tem equivalente em qualquer outro país de grandes tradições marítimas e constitui um dos mais altos valores do património científico de Portugal. Nessas cartas, em que à perfeição técnica se alia um elevado sentido artístico, espelha-se, como em nenhum outro documento, o transcendente significado da criação de uma nova arte de navegar, que levou as caravelas a todos os oceanos e a tantos litorais e universalizou a pequena casa lusitana.