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874 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 177

Tudo isto começou a desabrochar nos tempos do infante D. Henrique e em grande, parte por sua acção. Pode dizer-se que Portugal, que já havia nascido, só então encontrou as suas reais dimensões e, transbordando através dos mares, se constituiu na, sua expressão autêntica de nação transcontinental e plurirracial.
Tenho, dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. José Saraiva: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: velando por todo o arco da noite, rodeado de gentes de nações diversas, aí onde «se combatem ambos os mares, o grande mar Oceano com o mar Mediterrâneo», erecto na rocha gótica que se doira no primeiro amanhecer da Renascença, assim entrou na história aquele infante português, que mereceu ser celebrado por cavaleiro do mar, apóstolo da Fé, obrador de muita cristandade, coluna desta Europa civilizada e civilizadora e emblema da própria ideia de civilização.
Neste dobrar do cabo para a segunda metade do milénio após a sua morte, não está sozinha a Nação Portuguesa a venerar-lhe a ínclita lembrança. Com ela vem também, erguendo ao alto ramos e pendões, a gente das terras novamente descobertas. Vem o Mundo, onde a chama do espírito permanece viva e os valores da cultura ainda se veneram. Vem, na grandeza do seu corpo místico, toda a cidade de Deus a orar sobre a pedra do seu túmulo.
A cada qual sua razão para a homenagem.
Foi por seu talante que a grei, juntos corpos, almas e fazendas, se abraçou na cruz deste destino, que desde então se tornou para sempre a mesma razão do nosso viver. Por seu mandado, se lavraram barcas e se abalou na demanda dos remotos berços onde nasce o dia. Na argila dos marítimos mistérios plasmou as certezas do saber moderno, e é o seu gesto que cerra na história os portais do tempo antigo e faz dealbar nos céus do Mundo, tempo novo e atlântico. E a própria cruz, que a força dos apóstolos não pudera levar mais longe que onde acabam as veredas da terra, a própria cruz pôde então vencer os abismos do mar e o Salmo se fez verdade: «O Espírito do Senhor encheu a terra inteira».

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Há tantas razões para louvar que a vontade se enleia e a razão se perturba na eleição do louvor. Com vigor igual ao que pôs no amor da sua pátria, exíguo lar de que fez forja de impérios, ele serviu a causa da inteligência e a do evangelho. O fechar de cinco séculos não desterra do número das coisas vivas o pensamento de que ele foi o iniciador e é o símbolo. E julgo que a efeméride que passa, sob o signo de preito àquele que fez «a Terra inteira, de repente, surgir redonda do azul profundo», é uma afirmação da perenidade do génio português, o apontar de um mandamento que, vindo do passado, se projecta no futuro.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - A lição viva do infante: eis, Sr. Presidente, o escopo das palavras que escolhi para hoje dizer nesta tribuna. E talvez nem outras houvesse de maior louvor, porque este viver além do tempo, esta libertação da lei da morte, desde Camões os reputamos por mais lídimos sinais da glória verdadeira.
Não apenas em Portugal, mas ainda em todo o mundo culto, evocar D. Henrique é evocar toda a gesta das Navegações e dos Descobrimentos.
Não representa o dizê-lo que se lhe haja de atribuir toda a glória e autoria da expansão portuguesa pelo Mundo: obra nacional, colectiva e comum, ela pôde verdadeiramente ser grande, porque incorporou o esforço da Nação inteira, desde os príncipes ungidos aos pedintes dos caminhos, desde os capitães-mores da armada que el-rei trazia no mar até aos pescadores sem nome, que vieram ao retábulo trajando por melhor gala a rede do seu labor constante. Todos - cavaleiros de Ceuta ou soldados de Aljubarrota, altos prelados, clérigos segrais, frades de roto burel, que esmolaram nas aldeias os resgates dos cativos, os edis das vilas, os sesmeiros das herdades, homens de duros misteres, oficiais dos feitos da justiça ou da Fazenda-, todos estiveram presentes, em seu semblante grave e perspectiva de políptico, tais como os vemos unidos à volta do navegador, na tábua célebre - mera apologia da unidade da Nação, retraio de Portugal que ajoelha diante do seu primeiro mártir, daquele que, nascido em alto estado de infante, aceitara morrer na vilíssima enxerga dos escravos, para dar seu testemunho, ante Deus e ante os homens, de que a terra sagrada da Pátria não há-de servir de moeda, nem que seja para comprar o sangue e a vida dos seus príncipes.
Não, não seria temente da verdade atribuir a um só a glória que entre todos se reparte. Mas assim como os largos rios se tecem no fio de muitos arroios, assim também no histórico fluir há princípio e nascente. E o infante de Sagres é a fonte de que promana o caudal das epopeias, de que, por isso, ele se tornou o símbolo maior.
Ele foi a origem do longo e não concluso cantar que se derrama desde os montes de Timor aos palácios de Brasília. Longo cantar feito de audácias, de pelejas, de saudades e soluços reprimidos, de misericórdias e caridades esparsas por todas as lonjuras que pisámos; cantar espiritual composto em frases que perduram no imo da alma portuguesa; em que se recorda a bruma das manhãs ansiosas da largada e o corpo de Deus dado na praia aos que partiam: «Senhor, eu não sou digno!», em que há olhos, marejados, de mulheres procurando na linha azul do horizonte a notícia dos que nunca mais hão-de tornar e se adivinha o murmúrio de orações doridas, ao pé das lareiras apagadas ou junto ao Santo Cristo, esguido no calvário das arcas, onde, em vez do pão dos filhos, já se guardam só as saudades dos ausentes. Mas onde ressoa também o bradar triunfal dos gajeiros, do alto dos mastros grandes, a anunciar que, para além da cerração das ondas, se avizinham já da terra, os bons sinais; e o som do ferro a fazer sorrir na pedra a face dos padrões que ficavam a atestar cada nova passada no caminho; e o fervor das missas novas nos últimos confins da terra conhecida, e a imagem dos nativos a receber a graça do baptismo à beira dos rios, na espessura das florestas. Onde flui, na doce ladainha do doce falar de Portugal, a voz dos catequistas ensinando a amar a Deus e abrindo os primeiros rasgões na treva de usanças rudes, bestiais. Onde salta, em cascatas de luz, a algaraviada da juventude de todas as raças da Ásia, vinda aos colégios de Goa aprender, por palavras portuguesas, a lição dos mandamentos; onde refulge, em modos de cruzeiro que alumia a solidão do mar, o sacrifício dos 40 mártires do Brasil, e onde domina a voz do apóstolo de Moçambique: é cafres, de negros que sois, espero em Deus quão brancas serão as vossas almas! Onde desfilam os catecúmenos dos primeiros seminários de missões que houve no Mundo e os primeiros diáconos e presbíteros de raça negra que subiram os degraus do altar e onde