106 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 180
consórcios bélicos os mais diversos, numa palavra, os preconceitos e os desvarios de um mundo perturbado que subverte, em revolução implacável, padrões que a história radicou, sem que se vislumbrem rumos humanísticos claros, não Facilitaram e não facilitam a visão desapaixonada do que podemos apelidar o «caso português». E, assim, da originalidade ou singularidade de nação antiga se faz tábua rasa nos areópagos da política internacional. Argumentos válidos, expostos quantas vexes com desassombro, honestidade, até humildade, afiguram-se incapazes de aquecer a sensabilidade dos homens ou das nações que, desligadas, estrebucham no vórtice da crise europeia è precisamente o peso dessa crise que agora desaba sobre a Nação Portuguesa. Se os argumentos que a Nação invoca não encontram ouvidos no exterior, nem por isso silo menos verdadeiros, pelo que nunca, será de mais insistir neles.
Sr. Presidente: para muitos. Portugal não é mais do que esta nesga rectangular de território frente no Atlântico, afastada dos grandes entroncamentos da Europa, fechada sobre, si mesma numa vida rotineira, e calma. Para outros, ainda um país de pitoresco, museu vivo de estilo que a civilização mecânica há muito postergou nas regiões do Noroeste da Europa. Afigura-se terra arcaica e austera, de gente que trabalha com dureza a terra do Senhor - o pão, o vinho e o azeite adubados e colhidos com o suor do rosto. Aberto ao oceano, o País vive enovelado na neblina de um passado de aventura em que os homens domesticaram e fizeram do mar terra, para os seus passos. Portugal foi, pois também alfobre de grei que antes do século XV se lançou ao mar oceano e nos séculos XVI e XVII, principal mente, abriu caminhos ao Mundo e escreveu uma epopeia que provocou viragem decisiva nos destinos do Mundo.
Em análise mais miúda ressaltaria a diversidade de paisagens e de estilos de vida: paisagens diferentes e, subsequentemente, diferenciação de gentes o modos de vida: desde regiões de forte densidade populacional a quase desertos de homens, como no Sul e nas montanhas do Nordeste; desde as sobrevivência» comunitárias que lembram sistemas arcaicos de viver próprios à Europa média, ai f aos prósperos estabelecimentos agrícolas do Sul, que recordam os latifundia romanos. No fundo, uni país pobre, mas de gente esforçada, não beneficiado em condições de solo e subsolo. Deficiente em fontes de energia tradicionais, o estilo campesino manter-se-ia até tarde, como que indiferente aos progressos da mecanização que a revolução industrial promoveu em alguns países da Europa. Mediterrâneo no cerne da sua cultura, foi o Atlântico que abriu as portas à prosperidade e engrandecimento de Portugal. Foi de facto do ultramar que vieram os estímulos que cedo guindaram o País ao convívio das grandes nações.
Porém, é preciso não esquecer que quando o eixo da civilização estava no Mediterrâneo, aqui a esta finisterra, tinham chegado já as armas e a administração romanas, a minúcia requintada dos jardineiros islamizados ecos das, civilizações dos «campos abertos», além da acuidade financeira dos grupos judaicos. Colonizações peninsulares que sucessivamente se amalgamaram com o fundo antigo da Ibéria para formarem nação uma, se bem que complexa. Quando os Portugueses só votaram aos rumos do Atlântico, conheciam já diversos processos de colonização e tinham, criado predisposição para lidar com outras civilizações. Era um povo amadurecido. Se assim não fosse, como compreender que este pequeno país europeu, cujas* fronteiras se fixaram e mantiveram em definitivo muito antes que qualquer outro o conseguisse, se dilatasse por área" em nítida desproporção territorial e humana? Se assim não
fosse, como aceitar que Portugal, falho de tantos recursos, que não o engenho dos homens, quando comparado com os «gigantes» da Europa, sobreviva onde outros vêm claudicando? E nestes factos que reside o chamado «milagre português», que tanto se discute, crítica ou se amesquinha, sem que se tente a sua compreensão.
Um povo amadurecido e «assimilado» em vários graus, e como tal assimilador levou para os trópicos padrões da vida do Mediterrâneo. Ali organizou os espaços segundo a tradição ibérica, como estabeleceu aquelas relações humanas que estavam na base da sua formação própria. E assim, desde os aspectos de vida material até aos expoentes mais elevados do espírito tudo para ali foi carreado. De um estilo de habitação que havia de sofrer os retoques de outros, materiais do construção, que não a pedra, ao ensino de uma língua franca, o português, que se impregnaria de palavras e da maleabilidade forma de linguajares locais; desde instrumentos de trabalhar a terra e de farinar produtos até ao sangue que se misturou com o das gentes das cores mais diversas; desde as plantas do complexo agrário do Mediterrâneo até à expansão nobre de uma religião ecunémica, como o cristianismo. Mas tantos, tantos outros factos que o tempo não permite agora recordar. Mas só mais um exemplo: o das cidades. Não só nas faces cegas de África o Português abriu cidades, como por toda a parte, as edificou em moldes que ou lembram Lisboa ou o Porto, semelhança que não estava só na traça ou plano, mas no estilo de vida das populações plurais que sulcavam as ruas: portugueses da Europa, negros e mulatos, índios e amarelos, judeus e estrangeiros que ali viviam e comerciavam. A cidade do Salvador, Luanda velha, a Praia de Cabo Verde, a antiga Bolama e Lourenço Marques, na tonalidade dos sobrados e na profusão das gentes, eram como Lisboa, cidades de «muitas e desvairadas gentes». Cidades acolhedoras, que não obstante a estrutura social complicada, não conheciam bairros de segregação. Ainda hoje Luanda, Bissau e S. Tomé, apesar de súbito surto de expansão, apresentam originalidade, que as não confunde com outras, porventura mais modernizadas estabelecidas algures em África não portuguesa.
Nenhum povo do Mundo se identificou tanto com os trópicos e com as homens como o português. Foi ele que desencadeou o processo de formação de um novo humanismo desenvolvido em ambientes que em tantos traços se opunham aos do Mediterrâneo e da Ibéria. Nas terras novas e desertas, nas ilhas do Atlântico, um África, como no Brasil ou na índia, foram colonizadores que souberam utilizar a contribuição cultural que, com pretos, branco -, mulatos e caboclos, deram sociedades crioulas e seria fundo de uma comunidade de sentimento fraterno com Portugal. Criaram-se populações que apresentam, entre si, aquele sar de família» de, que fala o Prof. Orlando Ribeiro, que não está longe da maneira de sentir e ser do português metropolitano. E nisto se consubstancia, ainda, no dizer do mesmo mestre, a «notável lição» que, Portugal deu ao Mundo de aproximação de homens» de raça, credos e culturais materiais a mais diversas.
Neste facto, Sr. Presidente, reside toda a originalidade da acção portuguesa no Mundo.
São os Portugueses acurada de viverem de olhos voltados para o passado, evitando enfrentar as realidades presentes. Talvez haja alguma verdade nesta afirmação. Porém, no caso presente, perante» incompreensão exterior que rodeia a Nação não é de mais lembrar os alicerces que a estruturaram na expansão se os contados com outras civilizações. Também são os Portugueses acusado de oferecerem ao Mundo a face mais luzida do esforço colonizado, escondendo sistematicamente o outro lado