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5 DE ABRIL DE 1963 2261

O Sr. Júlio Evangelista: - Sr. Presidente: a última nau da Índia foi ontem devorada pelas chamas ali mesmo no rio Tejo, neste rio donde partiram, em Quatrocentos, como alvoradas promissoras de civilização, as primeiras naus que dobraram tormentas e fizeram o Mundo mais pequeno ao descobrirem o caminho que, através dos mares, conduz à Índia. Esta nau, que entregou o seu corpo às chamas e ao mar durante a noite de ontem para hoje, foi a última a ser construída nos estaleiros de Damão, com madeira de teca das matas de Nagar-Aveli, de um risco verdadeiramente surpreendente e galhardo, pois, segundo palavras dos especialistas da época, «nunca u onda o enxovalha nem lhe galga acima da borda, podendo afoitamente avançar-se que não há outro de vela mais formoso nem de melhores qualidades náuticas».
Velha nau centenária, nunca a onda a enxovalhou, como nunca o enxovalho manchou a velha e legendária altivez dos nossos marinheiros e dos nossos soldados.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Cumpriu gloriosamente o seu destino marinheiro aquela nau que ontem as chamas sepultaram para sempre no leito do rio que foi porto de partida da maior esquadra do Mundo, da mais ousada e da mais gloriosa e da mais espantosa esquadra do Mundo moderno.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O último arriar de bandeira naquele velho barco português, quando, no meio das chamas, homens ousados e valentes foram salvar o símbolo incorrupto desta Pátria incorruptível, é bom uma lição cheia de sentido e digna de meditação!
Veio da Índia a fragata D. Fernando o, depois de cumprido o seu quarto de sentinela nos sete mares portugueses, veio ao Tejo para quedar na velhice, enternecedora velhice, da obra social a que foi dado o seu nome. Ali viviam, e se educavam, e se preparavam para a vida do mar, os rapazes pobres desta cidade de Lisboa, que todos nos habituámos a conhecer e a estimar, e de que todos guardamos as gratas recordações da sua passagem garbosa pelas ruas desta grande capital ao som de fanfarra e de tambores, que alegravam o espírito de nós todos!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -Tombou a velha nau, a última nau da Índia! As florestas onde foi gerada vivem espezinhadas sob opressão e sob domínio estranho. Os estaleiros onde foi construída são terra irredenta e martirizada. Morreu de angústia e desespero a velha fragata D. Fernando - mas a angústia pode ser a transfiguradora fonte da renovação, e o mal pode bem oferecer-nos o motivo de acção para o transcendermos!

Vozes:- Muito bem, muito bem!

O Orador: - Neste momento, em que as labaredas ainda lambem o velho veleiro português, bom é que todos nos lembremos de fazer ressurgir o seu espírito e tentemos tornar possível a continuação da magnífica obra social de que o barco centenário era sede. E preciso que todos, entidades oficiais e particulares, saibam compreender o significado daquela obra e lhe dêem o estímulo indispensável à sua renovação. Neste momento, nesta Câmara, suponho que nenhum de nós deixará de ter uma palavra amiga e carinhosa para o grande impulsionador da Obra Social da Fragata D. Fernando, o nosso querido colega almirante Tenreiro, e também nenhum de nós deixará de confortar o seu desgosto, que é o desgosto de nós todos, prometendo-lhe o mais dedicado apoio para que possa prosseguir, e renovar, e refazer, o que as chamas levaram e o mar sepultou.

Vozes:- Muito bem, muito bem!

O Orador: - O cancioneiro popular português mergulha no sal marinho as suas raízes líricas. E nele encontramos versos que são lições e cauções de gesta: «A minha alma é só de Deus - O corpo dou-o eu ao mar!». A velha nau da Índia deu o seu corpo às águas salgadas do Tejo, mas a sua alma, o espírito da obra que nela se albergava, essa é de Deus, e porque é de Deus não pode morrer!
Tenho dito.

Vozes:-Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Burity da Silva: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: através da rádio, da televisão e da imprensa, chegaram até nós as funestas notícias da tragédia provocada por violento temporal e chuvas que atingiram tão profundamente a vida das populações da cidade de Luanda, a encantadora capital da nossa província ultramarina de Angola. Os órgãos de informação deram-nos bem a medida exacta das trágicas consequências do brutal desastre, das suas graves e profundas dimensões, que atingiram vidas de inocentes crianças, destruíram casas e ruas e provocaram enormes prejuízos materiais, estimados em centenas de milhares de contos.
Foi sem dúvida uma grande tragédia, a maior, conhecida, da história da cidade, como acentua a nossa imprensa.
Vivemos, cá de longe, o drama dos nossos irmãos de Angola, sofremos moralmente as suas angústias nessa emergência tão dolorosa. Também admiramos o seu estoicismo, a solidariedade das suas populações, enfrentando em comum, irmanados numa comunhão de sentimentos, chefes e subalternos, grandes e pequenos, pobres e ricos, no esforço gigantesco, que estão a empreender para a normalização da vida citadina.
Diz-nos a imprensa (do Diário de Noticias de Lisboa dissecámos estes pormenores) que o temporal assumiu aspectos de catástrofe. Não ficou praticamente intacta rua alguma c grandes artérias ficaram totalmente destruídas. Centenas de casas inundadas e muitos milhares de pessoas ficaram sem os seus haveres, existindo também centenas de estabelecimentos comerciais onde as águas reduziram a escombros artigos e mobiliário. Ruas esventradas e autênticos rios caudalosos que arrastavam troncos de árvores, pedregulhos e os mais diversos volumes. Dezenas de casas derrubadas; centenas e centenas de veículos nas posições e situações mais insólitas: danificadas, soterradas ou arrastadas pelo caudal de águas.
E ficamos a meditar, no meio de todo este drama, que a todos atinge - ricos, pobres e remediados -, o drama dos pobres, dessa massa anónima, como muito bem a classifica o repórter, temperada para o sofrimento, sempre conformada, vivendo a sua tragédia com extraordinário estoicismo, sempre pronta aos mais altos heroísmos, as mais edificantes atitudes de solidariedade humana e de compreensão cívica.
Essa mole de gente dos musseques (assim se classificam as extensas zonas suburbanas onde vivem as classes mais modestas e predominado elemento nativo), cujo problema