7 DE FEVEREIRO DE 1964 3167
doso da aldeia, da parentela e dos amigos abandonados, e desesperado de nada ter ganho em troca.
Para os que ficaram surge o problema de adequarem as tarefas produtivas à mão-de-obra reduzida e, segundo ponto importantíssimo, encarecida pela procura. Novas técnicas, novo material adjuvante, são necessários; mas este é caríssimo, aquelas resultam ou não; o certo é um pesado acréscimo dos encargos da produção, que não poda ressarcir-se nos preços, e se o conseguir fazer nas quantidades poderá vê-las desvalorizarem-se nas suas mãos. Em suma, o êxodo rural tende a agravar a crise agrícola que o provoca, ampliando-a em efeitos de ressonância.
Empobrecimento, desclassificação social, despovoamento dos campos, eis a tríplice figura da crise. Na base de tudo, porém, o que vamos encontrar é o desenvolvimento urbano e o crescimento industrial, no duplo efeito da criação de pólos atractivos e padrões de vida que obrigaram a agricultura a adaptações difíceis e dispendiosas, e do estabelecimento de condições de mercado que a impediram precisamente de realizar todos os rendimentos assim tornados necessários.
O primeiro efeito chama-se progresso; saudá-lo-ei, sem nada lhe opor que não seja a devida congratulação.
O segundo efeito tem sido de domínio, possibilitado pela organização do comércio e da indústria, pelas tendências da política e pelas contingências da produção e venda agrícolas.
Começando por estas últimas, recordarei a impossibilidade em que a agricultura se encontra de comandar a sua produção com vista a melhor economia. Sem embargo de alguns pretenderem fazer crer que a técnica venceu as contrariedades do tempo, a verdade pura é que mesmo nos países mais adiantados e com mais favoráveis condições naturais são correntes flutuações de rendimentos de até 20 por cento o mais, para uma ou outra banda das médias, só pelo efeito do calibre dos anos; por outro lado, certas especulações só se realizam a prazo largo, no termo do qual podem ser de prejuízo condições diferentemente previstas - será o coso, por exemplo, das culturas arbóreas ou arbustivas -, não obstante, os investimentos feitos lá ficarão a pesar, obrigando a continuar a exploração para salvar ao menos os encargos fixos. A meteorologia e os ritmos naturais de formação não cessaram de influir no rendimento agrícola, superando a vontade dos homens por mais apurada que seja a técnica.
Mas, se a agricultura não venceu as contingências da produção, mais débil se tem encontrado perante as da venda dos géneros colhidos.
O agricultor vende em mercados dominados pelos compradores e compra em mercados
dominados pelos vendedores, sem que nunca a sua intervenção prevaleça quanto ao comportamento dos mesmos mercados, a que está sempre sujeito, onde se apresenta sempre em estado de inferioridade, porque nunca o agricultor isolado tem importância tal que a sua acção determine modificações apreciáveis da oferta e da procura global, enquanto o comercia com que se debate, menos dividido, está em regra apto a ditar-lhe os seus termos.
As três condições da concorrência pura: atomicidade, homogeneidade dos bens negociados (que permite escolher a vontade os vendedores e força estes a ganharem a preferência por transigências nos preços) e ausência de coalizão são em regra perfeitamente realizadas pelos produtores agrícolas ao comparecerem nos mercados para enfrentarem um comércio entendido ou em condições de se entender para endurecer as transacções. Daqui, aliás, a insistência e o cabimento dos conselhos dados aos agricultores para se organizarem, a fim de se constituírem em poder económico a altura dos exigências da sociedade moderna.
Outro factor notoriamente prejudicial à agricultura está na relativa inelasticidade do consumo de géneros agrícolas, essencialmente destinados à alimentação. Fenómeno hoje assaz falado, o nosso povo já o adivinhava no desafio, insolente lançado aos ricos: «Se têm muito, comam duas vezes!». Por maior capacidade de compra de que se disponha, não é possível aumentar indefinidamente o consumo dos alimentos, além do que outros apetites intervêm a solicitar as bolsas, uma vez satisfeitas as necessidades fundamentais de subsistência; do modo que os agricultores estão, como bem se sabe, sujeitos a quedas muito rápidas dos preços se vêm ao mercado mais abundantemente providos. O contrário também se poderia dar, é certo, mas hoje em dia só em circunstâncias verdadeiramente excepcionais, pois o atalho das carências por importações do exterior é a reacção pronta das administrações.
Joguetes da natureza e do comércio, os agricultores tiveram de se acolher à protecção dos políticos logo que os mercados se lhes tornaram permanentemente adversos pelo afluxo daquelas importações, começado vai agora já em perto de um século.
Desde então ficaram definitivamente sob o domínio dos centros do consumo, dos centros urbanos, o qual, se antes se exercia só pelos mecanismos do comércio, passou a ser consolidado pela precedência da adesão política as medidas protectoras da lavoura.
Com rendimento fraco, porque forçada a vender mal e comprar pior, incerto e instável, mais do que nenhuma outra actividade dependente de amparos do poder político, a agricultura encontra-se no extremo da resistência à tempestade de interesses que se abateu sobre ela e não poderá salvar-se se esta não amainar, ou se forças exteriores não vierem refrescar as suas próprias, até a última já empenhadas na sobrevivência!
Procurei dar um quadro sereno, objectivo, reduzido às linhas essenciais, mas tentando não esquecer nenhuma da perigosa conjuntura em que a lavoura se debate. De propósito, sobra-lhe decerto em desenho o que lhe falta em cor: duvidoso de poder fazer vibrar nos corações a angústia dos agricultores, preferi descrever-lhe as causas o deixar a vossa razão compreender-lhes a paixão.
Creio que ainda resta, no entanto, considerar uma questão que algumas vezes me tem sido posta, até dentro desta Casa, e é a de as agriculturas estranhas sofrerem ou não de dificuldades comparáveis, na relatividade dos circunstâncias, às da nossa.
O ponto tem grande interesse, afigura-se-me, para decidir se o nosso estado de crise é principalmente filho de causas específicas e erros próprios, ou se é antes efeito de condições inerentes ao movimento universal da economia, pois da resposta dependerá não só o tratamento como a vontade de o aplicar. Ora é um facto, direi, um facto lamentável, mas exacto, que muitos críticos se têm ultimamente manifestado na convicção de a nossa agricultura sofrer só ou principalmente de males e erros exclusivos seus, óptica falsa que tende a alienar a compreensão e simpatia do público, embora não ouse insinuar que intencionalmente. Bastar-me-á recordar uma abertura de capítulo num discurso que há precisamente dois anos teve certa retumbância:
É geralmente admitido que as causas mais profundas da crise actual da agricultura portuguesa se situam no âmbito de um esquema institucional ...
para me justificar na demora sobre este ponto e na convicção de que conclusões deste tipo são deformadas pela limitação de vistas.