3572 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 142
- qualquer dignidade criminal específica - para abrir uma excepção quanto ao uso ilegal (sem licença) de acendedores ou isqueiros.
Tendo o Decreto-Lei n.º 39 187, de 25 de Abril de 1953, amnistiado «todas as contravenções puníveis com pena de multa» (artigo 1.º, n.º 2), levantou-se o problema de saber qual o âmbito de aplicação deste diploma em matéria fiscal. As dúvidas foram resolvidas pela Portaria n.º 14 516, de 27 de Agosto de 1953, confirmada pelo Decreto-Lei n.º 39 785, de 25 de Agosto de 1954, distinguindo entre crimes fiscais [fundamentalmente os actos ilícitos declarados puníveis e regulados pela lei penal, e sujeitos ao regime do direito criminal comum, mas incidindo sobre matéria fiscal - p. ex., a simulação em prejuízo do Estudo, artigos 455.º do Código Penal e 99.º, § 1.º, do Regulamento de 23 de Dezembro de 1899, hoje revogado e substituído pelos artigos 102.º e seguintes do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (16)]; contravenções de natureza penal, fundamentalmente (17) quando punidas com multa convertível em prisão; e infracções de natureza administrativa, quando punidas com multa não convertível. E indica a mesma portaria três exemplos de contravenções de natureza penal:
As transgressões aduaneiras (18), cuja gravidade advém do prejuízo que causam a uma economia proteccionista;
As infracções fiscais de funcionários fiscais, particularmente obrigados a absterem-se delas (19);
O uso ilegal de acendedores e isqueiros, nos termos do Decreto-Lei n.º 28219.
Salta à vista a desproporção entre a gravidade dos dois primeiros exemplos e do último. Na verdade, não descobre a Câmara Corporativa qualquer razão para considerar o uso sem licença de um acendedor ou isqueiro facto mais grave do que a maioria das transgressões fiscais, e por isso a qualificar como infracção de natureza penal, e não administrativa.
Acresce que, segundo o regime actualmente vigente, a imposição de uma sanção potencialmente pessoal é cometida, não a um órgão de soberania (como o tribunal - artigo 71.º da Constituição Política), mas ao chefe de secção de finanças (embora com recurso) - artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937; e é aplicada, não mediante a due process of law, per legale judicium, mas «sem estrita observância de fórmulas» (artigo 6.º do mesmo diploma). É certo que a conversão em prisão é requerida pelo Ministério Público ao juiz (artigo 11.º), mas a função deste é - parece - meramente homologatória. Talvez não formalmente, mas materialmente, há aqui uma violação do básico princípio nulla pocna sine judicio.
9. O exame à luz do direito criminal e financeiro do sentido geral da inovação proposta parece assim à Câmara justificá-la inteiramente, quanto ao seu mérito actual.
Quanto ao conteúdo e em mérito potencial
10. Mas não seria possível, para regular o uso de acendedores e isqueiros, um regime mais perfeito ainda?
Refere-se a justificação da apresentação do projecto em análise, feita à Assembleia Nacional por um dos seus autores, o Deputado Sr. Alberto de Meireles, à «circunstância de ser desconhecida nos restantes países a exigência de licença para uso de acendedores e isqueiros» (20).
Em regra, realmente, o regime é diferente em países estrangeiros (21); e um regime, muito usado nesses países, e que portanto se apresenta como possível e assim como alternativo em relação ao do projecto, é o regime da cobrança de um imposto único sobre o isqueiro ou acendedor, imposto que, como todos os indirectos, seria pago imediatamente pelo fabricante ou importador, ou pelo vendedor, mediante a aposição de um selo metálico ou contrastaria oficial, mediatamente pelo adquirente, cujo preço seria aumentado pelo mesmo imposto. Seria portanto um imposto de fabrico e importação, ou então de consumo, integrado no regime tributário especial dos flamíferos.
Esta solução é diversa, quer da vigente, quer da do projecto. Parece à Câmara Corporativa dever limitar-se a lembrá-la como possível, sem a sugerir ou defender. Na verdade, tal solução oferece vantagens, mas também inconvenientes. Tem a vantagem da maior comodidade - o adquirente do acendedor ou isqueiro paga de uma vez só o direito à sua utilização, sem se ter de preocupar com o pagamento anual da licença ou com os riscos da sua omissão, que se podem figurar como imposições de natureza pessoal, de certo modo vexatórias. Talvez tenha até a vantagem de uma maior rentabilidade - abrangerá mesmo os isqueiros e acendedores de uso doméstico, os quais, dado que aos fiscais não é permitida a entrada em casa alheia para fiscalização, hoje de facto não pagam licenças; e além disso facilita a tarefa da fiscalização e diminui assim o respectivo custo. Tem, porém, a desvantagem da onerosidade para o contribuinte: primeiro, porque o imposto único, para ser correspondente (22) ao valor do anual (mesmo tomando em linha de conta a duração provável dos objectos), terá forçosamente de ser relativamente elevado, elevado sobretudo em relação ao custo do próprio objecto (aliás, de forma alguma indispensável e cuja venda e consumo fortemente se ressen-
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Rosa, «Natureza Jurídica das Penas Fiscais», in Boletim da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos n.º 19, pp. 1269 a 1277, n.ºs 20-21, pp. 1571 a 1575, n.º 22, pp. 1759 a 1770; Dr. Mouteira Guerreiro, «Em torno da Infracção Fiscal», in Ciência e Técnica Fiscal n.ºs 37-88, p. 129; Vítor da Silva Garcia, «A Infracção Fiscal», in Ciência e Técnica, Fiscal n.º 46, p. 512; Domingos Martins Eusébio, «Subsídios para Uma Teoria a Infracção Fiscal», in Ciência e Técnica Fiscal n.º 55, pp. 127 e 128. «A multa fiscal é assim uma pena não criminal» - Dr. Cortes Rosa, 06. cif., p. 1273; cf. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, vol. n, p. 162.
(16) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41 969, de 24 de Novembro de 1958.
(17) A portaria indica como característica da contravenção fiscal de natureza penal a intransmissibilidade aos herdeiros da multa correspondente antes do trânsito em julgado da sentença que a imponha.
(18) Artigos 11.º, 50.º, 51.º p 151.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31 664, de 22 de Novembro de 1941.
(19) Decreto n.º 17 731, de 7 de Dezembro de 1929.
(20) Diário das Sessões, 1964, p. 2935.
(21) Mas em Itália, um decreto-lei de 11 de Junho de 1956 substituiu o direito único sobre o isqueiro por um direito anual a cargo do utente ou detentor, pago mediante a aquisição de um selo «que o utente pode aplicar sobre o aparelho ou sobre um qualquer documento de identificação pessoal» - Benato Alessi, Monopoli Fiscali, Impaste di Fabricazione, Dazi Doganali, Turim, 1956, p. 232.
(22) Parece à Câmara Corporativa que seria inconstitucional, por força da parte final do artigo 97.º da Constituição Política, um projecto de lei abolindo a licença de isqueiro, será, criar uma fonte de receita em princípio equivalente e compensatória.