20 DE MARÇO DE 1965 4585
grande capacidade governativa e a administração pública foi norteada por princípios honestos, sãos e de verdadeiro interesse público. Mas foi um alívio, e foi uma festa, quando o absolutismo foi, felizmente, banido, porque se tinha cavado um temeroso abismo entre a opinião pública da província e o seu governo, exercido pelos capitães-generais e governadores dos distritos ou orientado pelos ministros reais, na metrópole ou no Brasil.
Basta percorrer as velhas «ordens do dia» do quartel-general para se ter uma ideia da candência dos ambientes e verificar-se como é que na capitania-geral dos estados de Moçambique os aspectos do governo Militar se sobrepuseram ditatorialmente aos do governo civil e político da província.
Quem saiba disto, e conheça a tessitura dos factos, não se admirará, como me não admiro eu, de que anos depois, quando o liberalismo prudentemente conservador considerou militares os governos do ultramar, a população da cidade de Moçambique se tenha recusado a aceitar como governador-geral o oficial que lhe foi remetido com a patente de governador militar, e o obrigasse a partilhar com cidadãos escolhidos o governo político, civil, administrativo e económico da província, concedendo-lhe, portanto, apenas o comando-geral das tropas.
Durou este absurdo os meses bastantes para o governador militar poder preparar, com êxito, um movimento de espadas que o reintegrou na plenitude das funções de governador-geral. Mas nestas coisas um absurdo nunca vem só. E sucedeu que, banidos os cidadãos do improvisado governo colegial que o liberalismo provincial aceitara, até a metrópole resolver, se tornou impassível o governo àquele governador de qualidades e energia excepcionais, pelo que a própria metrópole o substituiu.
De facto, não é possível governar sem o apoio de uma opinião pública sólidamente esclarecida, extirpada dos elementos tendenciosamente perturbadores, que só fomentam a desorientação, e é fundamental que a opinião pública se afirme.
A este respeito pouca gente saberá que, claramente conscientes dos direitos cívicos e dos respectivos limites, os primeiros governantes da I República, em ordem ao idealismo e ao civismo que tão nobremente os animava, mandaram a Moçambique, em 1911, o primeiro alto-comissário, Dr. Azevedo e Silva, que tantos serviços ideais prestara à República desde os tempos de Coimbra e fora sempre um consagrado magistrado de grande envergadura moral, e mandaram-no a Moçambique por seis meses apenas, para sanear o ambiente e serenar os ânimos, exaltados com a fase de passagem de republicanização do regime, não obstante a nobilíssima dignidade de que os mais fervorosos monárquicos do ultramar deram prova, proclamando eles próprios a República, das varandas municipais, por ordem do Governo de Lisboa, como foi o caso de Freire de Andrade em Lourenço Marques.
Ia a contar que nos primórdios da República em Lourenço Marques começava a repetir-se a cena dos primórdios do liberalismo na ilha de Moçambique quando o Governo Central resolveu restaurar a disciplina cívica, e portanto a tranquilidade dos espíritos, com a prudente intervenção do alto-comissário Azevedo e Silva, que, para isso, se limitou a distribuir pelos vários distritos os que por actos insensatos e oratórias subversivas estavam apostados em arrastar a opinião pública para uma campanha de retaliações e violências de pretensa legalidade e suposto espírito republicano.
Recompostas rapidamente as coisas, deterioraram-se gravemente de novo anos depois, ainda na fase de sedimentação da República, quando esta, na metrópole, passou a estar à mercê da rua pela acção das Carbonárias, e lá pouco faltou para suceder-lhe o mesmo. Todos estarão lembrados de que o actual regime iniciou a esse respeito uma dura repressão legítima, que se tornou legalmente extensiva às colónias e teve por base a instituição da censura.
Em Moçambique, porém, e graças à sagacidade política do governador José Cabral, a censura à imprensa só por categórica imposição da metrópole foi instituída em 29 de Janeiro de 1934. Vale a pena relembrar a notícia que foi publicada no dia seguinte pelo Noticias de Lourenço Marques, porque diz tudo.
A censura à imprensa começou ontem a funcionar em Lourenço Marques, tendo já a ela sido sujeito este número. Convocados a tarde os representantes dos jornais, o Sr Governador-Geral declarou-lhes que chegara o momento em que não podia mais evitar o estabelecimento da censura, entrando por isso imediatamente em vigor o Decreto n º 22 469, de 27 de Maio de 1933. Naquela reunião dos representantes da imprensa o Sr Governador-Geral disse que é deixada plena liberdade de discussão e crítica à administração da colónia, apenas com a reserva de que serão exercidas com elevação, em termos correctos e sem descer ao ataque pessoal. A Comissão de Censura é constituída pelos Srs Capitães de cavalaria Luís Figueiredo e de artilharia Teixeira Finto e Monteiro Libório, funcionando numa dependência da Repartição dos Correios.
A esta histórica notícia tem a história a observar apenas que, não tendo o governador Cabral podido evitar a censura, a que sempre se opôs, a consentiu com uma condição que hoje não é respeitada.
Com a constitucionalização de 1933 foram estabelecidos os fundamentos da defesa moral da opinião pública Parece que ninguém tem nada a objectar, e eu também não, a que se defenda a opinião pública de deformações tendenciosas, de orientações intencionalmente deformadoras. Todas as consciências bem formadas pretendem por certo que a opinião pública se forme, exista, se renove e evolua segundo os princípios do mais puro humanismo cívico, para cumprir com eficiência e validade as missões que importam a um sistema neurovegetativo dos instintos nacionais.
O problema da opinião pública, que no antigo regime se confinava à expressão de qualidade definidora do bem comum - lembremo-nos do que era e como funcionava o antigo Conselho do Rei -, coincide agora com o âmbito da liberdade humana, ou antes, como prefiro sempre dizer, com a amplitude do dever cívico. Há, portanto, um dever de opinião pública que é um dever cívico e se aprende na família, na escola e no convívio entre os cidadãos Por isso, o antigo bem comum, que era uma expressão do valor moral, representava civicamente a causa pública, expressa por vozes revestidas de autoridade para isso, em razão de qualidades pessoais ou qualidades funcionais.
Não podemos, portanto, fugir ao princípio da liberdade de opinião em ordem ao dever de opinião, mas, porque os deveres são imperativos de conjuntura e as liberdades têm que ter limites para não colidirem, segue-se que é tão difícil à consciência exercer a liberdade de opinião como limitar-se nela.
Criada para reprimir os abusos que tentem praticar-se no exercício da liberdade de opinião pela imprensa, a censura não pode furtar-se ao exame do problema moral que se lhe depara ao substituir-se pela repressão a consciência prevaricadora.