762 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 13
interessadas em ajudar o Ministro a corrigir deficiências legislativas do que empenhadas, por intuitos políticos mal disfarçados, em demolir os alicerces pró-jurídicos de certas instituições, achariam pouco, como é natural, os quatro meses de propaganda demagógica que a discussão pública da futura lei civil gratuitamente oferecia aos seus mais largos intuitos de reforma social.
Outras, no pólo ideológico oposto, habituadas a sentir cobertas pela cortina tutelar do silêncio as ideias básicas que uma revisão integral do direito civil obriga a expor corajosamente à luz crua das realidades actuais e ao vento forte das modernas correntes do pensamento, terão, por seu turno, reputado excessivo o prazo que o Ministro ingenuamente marcou.
Quem, no entanto, se elevar acima das paixões, que tantas vezes ofuscam a razão dos mais dotados, para julgar com imparcialidade o mérito dos acontecimentos, a breve trecho concluirá que também sob este aspecto o termo estimulado nem foi excessivamente curto, como alguns protestam, nem foi demasiado largo, como outros conjecturam.
Não foi tão curto que os adversários mais encarniçados do empreendimento governativo se não vissem coagidos a pisar e a recalcar tediosamente as mesmas censuras em torno do quatro ou cinco soluções apenas, entre as largas centenas que figuram em livro tão extenso como o que trata o direito da família. Não faltou mesmo quem, à míngua de melhores argumentos, procurasse sub-repticia-mente deslizar do plano geral, onde a razão se deve livremente mover, para o terreiro impróprio dos sentimentos exacerbados, que é sempre fácil atiçar, com o triste sudário das realidades individuais, contra a disciplina imposta pelo exame frio e sereno dos problemas.
E também os quatro meses não foram afinal tão longos que muitos dos observadores mais tradicionalistas e conservadores não necessitassem de os esgotar até ao último instante para se refazerem da emoção de certas críticas, ou para darem à própria reflexão a possibilidade de reconstruir, com a ajuda preciosa do tempo, uma ou outra conclusão que a ignorância alheia, com a simples vantagem da surpresa, lograra destruir no seu espírito.
Muito acima, porém, das pequenas discordâncias que vieram à superfície da discussão durante o breve interregno dos trabalhos preparatórios, e que mais adiante teremos oportunidade de examinar, algumas grandes e consoladoras realidades é possível extrair dos factos, a que seria imperdoável não atribuir o devido relevo perante um organismo político como é a Assembleia Nacional.
Em época nenhuma da vida do País, que eu me recorde, nem no período em que o cartismo ergueu mais alto a bandeira do liberalismo, nem nos tempos em que a propaganda republicana pôs mais ao rubro a febre da democracia, um texto legislativo preparado por peritos e pelo Governo, com real interesse para a colectividade, esteve sujeito a um verdadeiro plebiscito da Nação durante tanto tempo como o Código Civil, cuja publicação ontem foi oficialmente anunciada.
E suponho que em nenhum país do Mundo as autoridades responsáveis conseguiram até hoje facultar aos estudiosos um conjunto tão extenso de publicações e uma colecção tão rica de elementos interpretativos como os milhares de páginas que, enriquecendo a literatura jurídica portuguesa, formam a massa imponente dos trabalhos preparatórios do código.
Pois, apesar de tudo, não vos haveis de admirar se continuardes a ouvir queixumes e a ler reclamações, seja contra a insuficiência da consulta feita aos sentimentos do País, seja contra a escassez dos subsídios que o Ministério proporcionou aos executores da nova lei.
E pecha nacional muito antiga, contra a qual a razão pouco pode e os factos pouco ou nada contam também.
Contudo, não são os dois aspectos realçados os únicos valores de sinal positivo que importa registar no balanço da actividade destinada a actualizar o direito civil português.
O resultado mais saliente, quer do plebiscito levado a cabo pelo Ministério, quer do diálogo que durante vários anos o Governo manteve com os melhores civilistas portugueses, é que a nova legislação, nas suas linhas fundamentais, corresponde ao sentimento geral da Nação.
Essa é a afirmação explícita contida nas centenas de mensagens que, a pretexto de se congratularem com o termo dos trabalhos preparatórios ou no intuito de sugerirem algumas ligeiras correcções na forma do articulado, serviram para manifestar o assentimento dos autores à orientação geral seguida nos vários capítulos da reforma.
E outra não é também a ilação que as próprias críticas vindas a público facultam a quem souber discernir entre os excessos verbais, em que é fértil a literatura polémica, ou as conclusões precipitadas de um que outro jurista amador, e o alvo de dimensões bastante reduzidas em que realmente procuram acertar as setas dos mais acerbos comentários disparados contra a doutrina do projecto.
Entre as directrizes fundamentais, que parece terem merecido o aplauso geral, convém pôr em relevo as seguintes:
1.a A acentuação social, ainda que moderada, do direito privado moderno, a qual se traduz no criterioso cerceamento dos princípios da liberdade negocial e da autonomia da vontade, no apreciável engrossamento das regras imperativas destinadas a esconjurar os perigos da desigualdade económica ou social entre os sujeitos da relação jurídica, no maior relevo concedido aos ditames da boa fé e aos postulados da justiça comutativa, e ainda no apelo mais frequente que a lei faz aos juízos de equidade do julgador;
2.a A reacção contra o positivismo jurídico, expressa na confissão aberta, franca, da insuficiência da lei perante os problemas sujeitos ao império do direito, na relevância jurídica de outros complexos normativos e no reconhecimento da existência de outras ordens disciplinadoras da conduta humana dentro do espaço normalmente reservado à legítima soberania do Estado;
3.a A elevação do direito internacional privado acima dos quadros restritos oferecidos pela paisagem do direito interno material, em homenagem às soluções que melhor sirvam o fim capital da harmonia jurídica entre as diversas legislações;
4.a O apego à segurança jurídica e à certeza do direito, que levou à conversão de muitos prazos de prescrição em prazos de caducidade e ao encurtamento sensível dos termos de uma e outra espécie;
5.a A função social da propriedade, com alguns vestígios no regime de certos direitos reais, e com acentuada expressão, quer na forma por que a lei define o conteúdo do domínio, quer na noção legal do abuso do direito;
6.a O alargamento dos poderes conferidos à mulher casada, como tradução prática do movimento de emancipação da mulher, mas sem quebra do princípio da unidade familiar;
7.º O reconhecimento da adopção como fonte das relações familiares;
8.a A substituição do regime da comunhão geral de bens, como regime supletivo no casamento, pela simples comunhão de adquiridos;