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28 DE NOVEMBRO DE 1966 767

ainda os casos em que a mesma formulação da regra geral, embora por uma nota meramente acidental, revele que o manto da previsão legislativa não cobriu todas as situações do tipo genérico que a norma abrange.
Foi precisamente o intuito de permitir ao julgador a abolição de certas injustiças resultantes da aplicação absoluta das normas gerais que levou o projecto a quebrar a rigidez do princípio estabelecido na actual legislação, mediante um critério sem dúvida mais preciso que a expressão constante do anteprojecto.
A verdade, porém, é que, não obstante a sua maior precisão, a fórmula sugerida deu lugar a tantas dúvidas sobre a possibilidade de, aplicação analógica de certos textos, durante os quatros meses de apreciação pública do projecto, que a breve trecho se reconheceu a necessidade de não alterar a doutrina estabelecida no direito vigente, por se mostrar a menos inconveniente de todas as soluções possíveis.
Como diria Manuel Andrade, houve que sacrificar uma possível maior justiça nas aras da certeza jurídica.
Nem o preceito que fixa a anulabilidade dos negócios usurários (artigo 282.º) nem a norma que define o chamado abuso do direito (artigo 334.º) deram margem até agora a dúvidas sérias de interpretação. Mas ambas as disposições serviram de pretexto a uma crítica bastante viva contra os poderes arbitrários que através de semelhantes soluções a lei colocaria nas mãos dos juizes.
E como intervenções análogas do julgador são admitidas em alguns dos problemas regulados no livro das obrigações, não faltou quem no facto visse retratada uma coordenada geral do sistema e a reputasse francamente condenável.
E conveniente analisar com toda a atenção a dúvida formulada, mas na parte das obrigações em geral, visto ser nesse extenso capítulo que o leitor pode encontrar, de facto, mais frequentes vestígios da orientação legal.
São em número apreciável os casos em que, nas obrigações em geral e nos contratos em particular, a lei remete de modo directo para os juízos de equidade do julgador ou confere ao tribunal, através de conceitos bastante maleáveis, uma ampla margem de apreciação das coisas na resolução de determinados problemas.
Nos comentários ao projecto, foram apenas referidas, além das hipóteses há pouco destacadas na parte geral, a resolução ou modificação do contrato fundada na alteração das circunstâncias (artigo 437.º), a revisão da renda no arrendamento rural (artigo 1070.º) e a decretação da separação entre os cônjuges quando o queixoso tenha requerido o divórcio (artigo 1794.º), mas várias outras disposições poderiam ser adicionadas ao rol para confirmar que se trata, com efeito, de uma orientação intencional da lei, embora em nenhum ponto ela tenha sido arvorada em regra geral.
Como se justifica a nova tendência da lei? Em que termos vem aceita no código?
Quanto à primeira interrogação, já o Doutor Manuel Andrade começara de pôr o dedo na ferida que se pretende sarar quando, a propósito dos poderes conferidos ao julgador na interpretação e aplicação das leis, escreveu as seguintes palavras: «Dir-se-á contra isto... que assim se vai confiar aos nossos tribunais um poder de apreciação para cujo exercício em termos aceitáveis eles não estão capacitados. Mas responde-se: o esforço da nossa política legislativa deve incidir antes no melhoramento da judicatura, em vista de a tornar comparável à das outras nações civilizadas, do que no da mecanização dos textos
legais, pelo receio de nos faltarem juizes competentes para uma satisfatória aplicação de textos diversamente estruturados.»
A opção aberta ao critério do legislador está posta com toda a clareza; resta explicar as razões da preferência seguida pelos reformadores da lei.
Ora, a experiência de séculos ensina que as relações entre os homens, mercê sobretudo do avanço prodigioso da técnica, se modificam a cada passo e mostra ainda como lenta mas continuamente se alteram também as concepções políticas, económicas, morais e sociais em que assenta toda a estrutura da ordem jurídica. E à proporção que o ritmo da vida moderna se acelera, mediante a facilidade e rapidez cada vez maiores com que o homem, as mercadorias, a palavra e a imagem se deslocam no espaço, mais frequentes hão-de ser as mutações das realidades que ao direito incumbe disciplinar, mais bruscas e radicais as alterações a que estão sujeitos os critérios normativos do jurista.
Criar para novos tempos, carregados com tais presságios de instabilidade nos horizontes do futuro, um código assente em fórmulas rígidas, ou pretender mecanizar os textos legais, equivalia a hipotecar todo o esforço da reforma a um crédito insustentável, sujeitando a nova lei ao risco iminente de uma execução ruinosa a curto prazo.
Se, ao invés, a lei for dotada com fórmulas suficientemente flexíveis nos pontos estratégicos do sistema, se dispuser de cláusulas gerais que permitam ao julgador adaptar o direito às naturais evoluções da sociedade civil, o código adquirirá maiores garantias de sobrevivência, com todos os benefícios que promanam da estabilidade da ordem jurídica contra as flutuações inevitáveis da legislação extravagante ou contra o arbítrio descontrolado do julgador sem apoio legal. Só assim o edifício legislativo disporá das janelas por onde possam circular as lufadas de ar fresco com que a filosofia, a religião e a moral renovam de tempos a tempos o ambiente pesado da vida social.
Este o objectivo essencial que a orientação adoptada deliberadamente se propôs atingir, com o conhecimento exacto dos meios de que o sistema dispõe e com a perfeita consciência das limitações que a prudência aconselha.
Com efeito, a preparação teórica dos diplomados em Direito, entre os quais os juizes são recrutados, é hoje muito superior à que possuíam os bacharéis dos fins do século passado, e bastante diferente mesmo da que as Faculdades ministravam no primeiro quartel do presente. A um ensino de estilo dogmático, de feição bastante escolástica, de limitados contornos institucionais, em grande parte tributário da pura análise exegética dos textos, sucedeu um trabalho de rasgada formação doutrinária, dotado de verdadeiro cunho científico. E entre as vantagens imputáveis a esta fecunda evolução de métodos no ensino da ciência jurídica figura, sem dúvida, a da maior aptidão dos alunos para lidar com fórmulas maleáveis, de conteúdo variável com os tempos, como aquelas que a nova legislação não desdenha de utilizar nos casos de necessidade.
Por outro lado, com todas as virtudes e defeitos inerentes às instituições humanas, a magistratura portuguesa foi sempre justamente apontada como um corpo de homens prudentes, criteriosos, dotados de bom senso, ressalvadas as raras excepções que pouco representam no quadro geral da profissão. Se algum reparo merece pelo uso dos poderes que a lei já agora lhe confere, pode asseverar-se que peca mais por defeito que por excesso, no desempenho