28 DE NOVEMBRO DE 1966 769
são, sempre de recear em matérias de tão profunda repercussão económica e social como são as que tocam na habitação das pessoas ou na sede dos estabelecimentos comerciais ou industriais.
(Condição essencial para a conveniente execução da orientação fixada é que os peritos saibam distinguir entre as regras que a experiência e a reflexão mandam inserir no código, pelas provas de validade que já deram ou pelo manifesto acerto dos critérios que exprimem, e os preceitos que a boa prudência, por falta de garantias idênticas de permanência, aconselha a remeter para o domínio da legislação especial.
À luz deste pensamento, é fácil compreender a razão por que, mantendo o instituto do arrendamento dentro das suas portas, o código remeteu para outros diplomas a regulamentação do despejo por motivo de obras destinadas a aumentar a capacidade locativa do prédio, e o motivo por que guardou completo silêncio acerca do tratamento excepcional que as cidades de Lisboa e do Porto usufruem no capítulo da actualização das rendas quanto aos arrendamentos para habitação.
A lei de introdução mantém este último desvio, mas a título meramente transitório, porque a revisão do problema se impõe, a meu ver, com a maior urgência possível.
Todos hão-de certamente reconhecer que em país tão pequeno, onde os proventos do próprio funcionalismo não diferem de terra para terra, se não justifica de modo nenhum esta aberração de haver um regime para o arrendamento destinado à habitação nas duas capitais e outro muito diferente, num ponto essencial como é o da fixação das rendas, para todo o restante território.
Se as respostas dadas em 1948 pela Assembleia Nacional ao problema da revisão das rendas constituem, de facto, as soluções mais equilibradas que os juristas puderam conceber, nenhuma razão convincente impedirá, no terreno da estrita justiça, que os mesmos princípios se apliquem a todo o País. Tanto mais quanto ao lado da justiça, em favor da tese da uniformidade de regime, militam outras circunstâncias ponderosas, como a de o benefício concedido aos antigos inquilinos de Lisboa e do Porto estar no fundo a ser pago, com larga soma de juros, pelos novos arrendatários, de quem os proprietários exigem (até certo ponto justificadamente, dada a estagnação forçada do contrato) rendas que são excessivas para o padrão médio das remunerações do trabalho.
Da inalterabilidade das rendas, num mercado em permanente evolução, há-de resultar por força a progressiva deterioração de uma parcela não despicienda do património imobiliário nacional, fenómeno a que os Poderes Públicos não devem assistir impassíveis.
A este argumento hão-de alguns redarguir que o Estado também não pode ser indiferente à situação difícil em que a grande massa dos inquilinos será lançada pela ameaça do agravamento periódico de um factor que pesa de modo sensível nos pratos do seu débil orçamento.
A observação é exacta, mas como está deslocada no plano do contrato de locação, não é difícil refutá-la com as seguintes razões:
1.a Nada explica, fora do âmbito das considerações puramente demagógicas, que sejam os senhorios, por uma anómala singularidade do contrato de arrendamento, a classe dos proprietários condenada a suportar o peso da protecção social que o Estado deva a todos os inquilinos ou a parte deles;
2.º Ainda que, por absurdo, se entendesse serem os senhorios as únicas vítimas expiatórias que o Estado devia imolar no altar das legítimas reivindicações proletárias, mal se compreenderia então que o sacrifício, em lugar de abranger a todos, recaísse apenas sobre os senhorios de Lisboa e do Porto;
3.a Nem sequer se concebe, analisada a questão sob o prisma unilateral da protecção social devida às classes mais desfavorecidas, que entre os próprios inquilinos de Lisboa e do Porto haja em cada momento beneficiários a par de vitimas das desigualdades fomentadas pelo regime de excepção que a lei consentiu: uns, aproveitando da imutabilidade de rendas antigas, cujo montante fere o mais elementar sentimento de justiça; outros, onerados com rendas elevadíssimas, que, pela mesma razão, deferiam ser reduzidas em função da modesta bitola com que se mede o nível de vida alcançado pelo comum da população.
Eis, por conseguinte, um problema que o código deixa intencionalmente em aberto, mas que precisa de ser resolvido sem grandes delongas, se as entidades responsáveis quiserem apagar a tempo uma nódoa de injustiça que só mancha o prestígio do sistema.
Será muito breve, porque mais as circunstâncias não pedem, o exame do livro que trata dos direitos reais.
Há certas zonas da matéria que, apesar de bastante extensas, nem uma só objecção suscitaram. Das observações que foram feitas, algumas são de tal sorte infundadas que replicar-lhes seria malbaratar aos olhos de todos o tempo que o escasso para coisas bastante mais sérias; outras eram pertinentes, e por isso mesmo foram atendidas na revisão final, mas, além de serem em número bastante reduzido, dá-se o caso de tocarem aspectos de mero pormenor, que não justificam a sua apreciação numa comunicação por natureza cingida às linhas fundamentais das soluções de maior projecção.
Exceptuar-se-á apenas um reparo que, num organismo político como a Assembleia Nacional, convém que não passe em julgado.
Afirmou-se que a função social da propriedade não teria ficado expressa com a necessária nitidez nos vários lugares do projecto, pois que este, contra todas as aparências, nada teria acrescentado de novo nesse capítulo às prescrições da legislação vigente.
Ora, a verdade é que os novos textos reflectem, em vários pontos sintomáticos, como não poderia deixar de ser, uma concepção da propriedade muito diferente da que transpira, por todos os poros, do Código de 1867.
Já em outro lugar, reproduzindo a lição de um categorizado civilista brasileiro, foi por nós explicado que as limitações ao (poder absoluto do proprietário, através das quais se nota a crescente subordinação dos fins individuais aos interesses superiores da colectividade, têm o seu campo natural de implantação no canteiro do direito administrativo, e não nos domínios gerais do direito civil.
A despeito disso, um estudioso atento, conhecedor dos problemas, sabedor do seu ofício, não experimentará dificuldades de maior para desencantar, principalmente no regime do inquilinato, no arrendamento rural, nas servidões, da propriedade horizontal, no próprio regime das nulidades, até na multiplicação dos casos de caducidade dos direitos e no encurtamento geral dos prazos, tanto da caducidade como da prescrição, uma série numerosa de limitações, em aberta oposição à concepção individualista da propriedade, que na economia do estatuto de 67 se comunicava à titularidade dos outros direitos.
Algumas das restrições provêm da legislação posterior à época liberal, outras é no projecto que aparecem formuladas pela primeira vez, e é nas colunas do novo código que recebem o baptismo legal.