770 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 43
Muito significativo também é o facto de o código, ao descrever o conteúdo que tem o direito de propriedade, haver incluído na definição, como elemento normal, e não a título de excepção encravada no poder absoluto do dominus, os limites resultantes da lei para o gozo do proprietário.
Dir-se-á que na essência se trata de um aspecto demasiado subtil arrancado a uma pura noção geral, mas à observação é fácil retorquir que tal subtileza chega para revelar já um espírito muito diferente do que anima os clássicos postulados do individualismo, traduzindo uma outra concepção da propriedade, que é, como a experiência mostrará, susceptível de desentranhar-se em muitas soluções práticas.
Mas a consagração mais expressiva da função social da propriedade, feita em tese geral, é a que resulta da noção do abuso do direito (artigo 334.º).
Não deixa de ser interessante observar como alguns comentadores se mostraram receosos dos poderes que semelhante noção colocava de futuro mas mãos dos nossos juizes; enquanto outros, com o maior desembaraço, não hesitavam em invectivar os autores da reforma, porque o preceito, no seu aspecto mais avançado, nada aditaria de novo à doutrina já proclamada em alguns textos vigentes, como a Constituição, o Estatuto do Trabalho Nacional e ... até o artigo 2167.º do Código Civil em vigor.
Assim se chegou, através de sucessivos deslizes no plano inclinado das realidades legislativas, ao extremo de equipar ai a pura referência à finalidade egoísta da propriedade, feita ;a título puramente acidental e descritivo, sem o menor intuito restritivo, por diploma de marcada feição liberal, à condenação directa, terminante, categórica, do exercício do direito contra a sua finalidade económica ou social, proferida por sentença legal em período de franco intervencionismo do Estado na organização da vida civil.
E da mesma forma se não mediu a distância considerável que medeia entre as simples proposições, de carácter programático, contidas em textos de índole essencialmente política, como sejam a Constituição ou o Estatuto de Trabalho, e a consagração efectiva dos corolários práticos que brotam dos mesmos princípios feita por uma norma jurídica que se destina à aplicação corrente dos tribunais comuns.
Não será por certo de boa prudência o acto de amedrontar as pessoas com a exibição das armas de que a lei dispõe, mesmo quando se trata de prevenir todas as hipóteses da batalha entre as ideias e os factos do futuro; mas também ninguém levará a mal que o sistema se defenda das injustas afrontas que lhe façam, mostrando o arsenal dos instrumentos que legitimamente lhe pertencem.
Na sua aparente simplicidade, o artigo 334.º do novo código - o tal que define o abuso do direito - constitui, na verdade, um manancial inesgotável de soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos, harmonizando os poderes do proprietário com as concepções actuais e futuras acerca da propriedade.
Cada um dos limites assinados genericamente ao exercício do direito., para salvaguarda da sua legitimidade, constitui um filão precioso de restrições, cujo conhecimento abre largas perspectivas à prudente exploração, tanto dos tribunais como da escola sobretudo. No seu conjunto, servindo como instrumento de contínua renovação da ordem jurídica quanto ao exercício e tutela dos direitos, o artigo 334.º constitui uma arma de gume tão afiado que só a mãos prudentes ela poderia ser entregue sem risco de o preceito ferir gravemente a segurança do comércio jurídico.
Ir mais longe do que foi o legislador, para desferir golpe mais profundo no livre exercício dos direitos, além de ser imprudente, não parece necessário aos fins próprios da legislação civil.
Foi sobre o direito da família que desabou quase todo o peso da crítica feita ao projecto, podendo, no entanto, acrescentar-se que se reduzem a muito poucas as soluções combatidas pelo sector de opinião que nesse capítulo se manifestou com maior exuberância.
A origem de alguns comentários, em especial o modo como foram formulados, hão-de ter provocado certa estranheza entre as pessoas menos prevenidas, visto ser o livro da família exactamente a parte mais ousada e inovadora de todo o diploma, e por dentro dele se ter construído um sistema bastante equilibrado, no qual, se foram respeitadas as estruturas familiares existentes como células essenciais do organismo social, muitos preconceitos foram também abolidos, e muitas soluções rotineiras condenadas em nome do progresso moral da colectividade que ao Estado cabe defender e cumpre mesmo estimular.
Mas o facto não causará excessiva surpresa a quem, procurando compreender as pessoas e dar o justo valor às coisas, tiver presente no seu espírito uma série ponderosa de circunstâncias, que vão desde a notória desorientação que grassa em muitas inteligências, indisciplina que reina em determinados meios, os profundos reflexos que têm no instituto da família as diferentes concepções morais, religiosas e políticas espalhadas pelo mundo, até à diminuta percentagem das soluções mais alvejadas pela crítica relativamente às numerosíssimas inovações consagradas no novo direito civil.
Essencial, no meio de tudo, é que nem o coro dos louvores recebidos, nem a sanha das invectivas mais acintosas, tenham roubado a quem meditou nos problemas, seja a serenidade necessária para procurar entre juízos tão desencontrados todas as contribuições aproveitáveis para o aperfeiçoamento da lei, seja a humildade indispensável para rectificar os erros e as imperfeições que porventura haja descoberto.
Essa foi, de facto, a intenção que animou os trabalhos de revisão final do projecto.
Sacrificando qualquer ponta de amor-próprio nascido na contemplação da obra realizada, colocando o interesse nacional em posição sobranceira a todas as correntes de opinião, tentando elevar o seu pensamento acima das paixões sectárias que apenas servem para obliterar o entendimento das pessoas, os responsáveis pela revisão forcejaram por descobrir em todos os pontos controvertidos da nova legislação os princípios que, servindo os fins superiores da criatura humana, melhor se adaptassem às exigências específicas da comunidade social, em que os Portugueses há mais de oito séculos se integram.
E outra atitude não mereceria, aliás, o beneplácito do Governo.
A primeira inovação de grande vulto no âmbito do direito da família consistiu no reconhecimento da adopção como fonte das relações familiares.
O interesse invulgar que o novo instituto despertou em várias camadas do público há-de naturalmente afrouxar, logo que os interessados vejam legalizadas muitas situações de facto, que os anos acumularam, e que a lei vigente não podia sancionar, por carência do meio adequado. Mas não restarão dúvidas de que a medida corresponde a uma necessidade social, e que esta merece a vários títulos o favor da tutela legal, embora por forma que a adopção se não desvie dos fins altruístas que a legitimam.