766 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 43
metros adoptados: e desde que ela caiba ainda no texto legislativo, nenhum impedimento se deve levantar contra a sua validade.
Estes são os rasgos essenciais da posição doutrinária que julgamos mais defensável: considerando a vontade real do legislador como escopo fundamental da actividade interpretativa-, ela faz ao longo da penosa caminhada imposta ao intérprete um largo apelo a subsídios de natureza puramente objectiva.
Porém, o código, na esteira do caminho aberto pelo projecto, foi bastante mais prudente e comedido, como convinha a um diploma desta natureza. Colocando-se deliberadamente acima da velha querela entre subjectivistas e obiectivistas, a nova lei limitou-se a recolher uns tantos princípios que considerou aquisições definitivas da ciência jurídica, sem curar grandemente da sua origem doutri-nária. Em tudo o mais, no dizer do Doutor Andrade, ouve o propósito de deixar o campo livre para a actividade da doutrina, em problema de tanta complexidade e transcendência que perigoso seria tentar solucioná-la de uma vez para sempre.
Assim, muito de caso pensado, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 9.º. evitou-se falar na vontade do legislador ou na vontade da lei, para discretamente se referir apenas «o pensamento legislativo». Com o mesmo espírito de prudência se utilizou no n.º 1 desse artigo uma expressão bastante vaga, o menos vinculativa possível «tendo sobretudo em conta», para designar o valor que assumem na labor do intérprete as circunstâncias vigentes à data da elaboração da lei e as condições verificáveis ao tempo da sua aplicação, sendo certo ainda que nenhum significado especial possui a ordem por que são indicados esses dois factores.
Quanto às tais recomendações válidas para a grande generalidade dos casos, o código não deixa de consagradas, mas fá-lo com grande discrição (em termos mais moderados que o anteprojecto), nada dizendo sobre a forma de resolver o conflito entre os resultados práticos a que eles conduzam, e afirmando de modo claro que se trata de simples critérios ou directrizes de ordem geral. Dentre do mesmo contexto de ideias se explica, por fim, a eliminação do preceito que no projecto se referia ao valor dos trabalhos preparatórios, por se terem suscitado dúvidas sérias, que não era fácil esclarecer no texto de lei, acerca da forma como seriam fixados os limites da sua atendibilidade.
A doutrina do código relativa à integração das lacunas da lei, afora ligeiras diferenças de pormenor, representa a consagração explícita, em termos adequados, das soluções já propugnadas pelo Doutor Andrade em face da, imperfeita legislação vigente.
É reconhecida a existência de casos omissos e aceita-se o recurso à analogia como o primeiro processo de integração das lacunas.
A noção de analogia dada no projecto e mantida no código procura impedir que a integração se venha a transviar nos perigosos labirintos da pura lógica conceitual, orientando-a directamente para os trilhos mais seguros da justiça relativa ou da analogia substancial. Em lugar de se prender no puro desenho formal das situações recortadas na lei, ou de atender à mera semelhança exterior, isionómica, entre o caso regulado e o caso omisso, o jurista deve procurar as verdadeiras razões justificativas do regime fixado para a hipótese legalmente prevista e averiguar, em seguida, se as razões apuradas colhem ou não para a questão imprevista.
Outro não era, no essencial, o alcance da fórmula já usada no anteprojecto - «consideram-se análogos os casos que. razoavelmente, devam ter o mesmo tratamento jurídico» -, cujo acento tónico está menos no advérbio de modo (razoavelmente) do que no derradeiro juízo referente à identidade de tratamento exigida pelas duas espécies de casos.
É evidente que na base da exigência de um tratamento idêntico está a verdadeira semelhança, a analogia real e não estritamente formal, entre a situação regulada e a hipótese omissa.
Prevendo em seguida a falta de casos análogos, a lei adopta o célebre critério formulado no código suíço, que entrega a resolução do problema à cogitação do próprio intérprete ou à actividade integradora do julgador.
Não remete, no entanto, para os juízos de equidade, para a justiça do caso concreto, compelindo antes o julgador a criar previamente uma norma geral e abstracta, na estrutura da qual a realidade concreta se despirá das suas roupagens acessórias e a disciplina da situação se libertará dos sentimentos e das paixões que tantas vezes perturbam o bom julgamento dos casos individuais.
A simples descrição lógica deste processo mostra como erraria abertamente a pontaria a crítica que pretendesse atingir a solução com os dardos que é uso jogar contra o alvo da equidade: nem a lei consagra neste caso o recurso à equidade, nem a solução diverge do ensinamento que era já a boa doutrina em face da legislação vigente (artigo 16.º do Código Civil).
Também é líquido que o código não remete o intérprete para os princípios contidos no sistema.
Uma coisa é legislar dentro do espirito do sistema, sem violar por conseguinte os postulados fundamentais da ordem jurídica estabelecida, e outra bastante diferente é legislar segundo os princípios exarados nesse sistema.
Na prática, a diferença está na possibilidade de o jurista, ao integrar as lacunas da lei, criar novos princípios, traçar à legislação e à jurisprudência rumos até então desconhecidos, desde que não ofenda o espírito do direito vigente.
Isto significa que o código não refere quais sejam as regras em que deve basear-se o preenchimento das lacunas, nem sequer apontando para os princípios do direito natural, como fazia o Código de 67, de harmonia com a concepção jusracionalista da época. A explicação do facto reside ainda no mesmo espírito de prudência legislativa que dominou toda a disciplina destas matérias.
Sem prejuízo de ter assumido em outros pontos uma posição de acentuada reacção contra o positivismo legal, a lei quis deixar neste capítulo da criação do direito o campo suficientemente aberto a todos os progressos da jurisprudência e a todas as conquistas da doutrina.
Só as normas excepcionais continuam a ser insusceptíveis de aplicação analógica.
O projecto admitia, no entanto, a aplicação por analogia dos preceitos dessa natureza, desde que as normas gerais correlativas não contivessem princípios essenciais de ordem pública.
Era um sinal do protesto, generalizado na melhor doutrina, contra as injustiças a que frequentes vezes dá lugar a aplicação rígida das regras gerais. E a mesma insatisfação exprimia por forma bastante nítida o próprio anteprojecto, embora o fizesse em termos de tal modo vagos e imprecisos que tornavam a nova doutrina dificilmente exequível na jurisprudência.
O Doutor Andrade parecia insurgir-se sobretudo contra a aplicação sistemática daquelas normas gerais que, não estando directamente formuladas na lei, apenas se alcançam por ampliação indutiva das soluções isoladas em que elas afloram. Mas a esses poderá o jurista aditar