768 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 43
do papel que a ordem jurídica pretende confiar à jurisprudência. Para documentar a asserção com um exemplo bastante elucidativo, basta reflectir na forma como o Supremo, não obstante os reiterados esforços que a lei processual tem feito, se obstina em cerrar as portas do Pleno, através das quais o tribunal é alçado ao plano dos órgãos criados do direito.
Por essa razão, se os meus colegas do foro me não lavassem a mal, eu diria que os critérios flexíveis do novo direito civil fazem recear mais os excessos da má advocacia que temer os abusos da má judicatura. Advogados e juizes hão-de, no entanto, contar sempre com o precioso auxílio da doutrina que se esforçará, como lhe cumpre, não só por interpretar as fórmulas consagradas no sistema, mas por adaptá-las também às novas realidades práticas, que os tempos vierem a forjar.
E há um aspecto, não menos importante que os anteriores, que falta ainda focar.
E que o legislador não ignorou nem subestimou os perigos do livre arbítrio dos tribunais, e por isso mesmo procurou limitar com todo o cuidado a intervenção do julgador sem prejudicar a necessária maleabilidade da lei.
Em primeiro lugar, fora da convenção das partes, o recurso aos juízos de equidade só é permitido nos casos taxativamente fixados na lei, e esses casos, apesar de serem mais números os que no direito em vigor, não deixam de ser bastante limitados.
As próprias cláusulas gerais, que apelam com especial intensidade para os critérios de apreciação do tribunal, foram criteriosamente implantadas nas zonas onde o uso delas é menos perigoso (como sucede no domínio dos contratos em particular) ou nos pontos estratégicos do sistema, onde a sua colocação, pareceu indispensável (abuso do direito; alteração anormal das circunstâncias vigentes à data do contrato; negócios usurários; dissolução do casamento, etc.).
Em segundo lugar, houve a preocupação de introduzir em todas, ou quase todas, as disposições do género alguns requisitos de carácter objectivo, mais aperfeiçoados pelo esforço construtivo da doutrina, com uma dupla função: servem de critério auxiliar na apreciação valorativa que a lei impõe ao intérprete; e funcionam, além disso, como limites ao puro arbítrio do julgador.
Assim, notante à resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, não basta para afectar a estabilidade da trama negocial a modificação de quaisquer elementos que impressionem a sensibilidade do julgador: é necessário que estejam em crise as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Não chega mesmo, para o efeito, qualquer alteração; há-de tratar-se de uma alteração anormal.
E não fluam por aqui as limitações da lei.
Por um lado, faz-se mister que, em face do novo condicionalismo criado à relação contratual, a exigência das obrigações assumidas pelo lesado afecte os princípios da boa fé, não bastando aliás qualquer espécie de ofensa, uma vez que o preceito fala intencionalmente em ofensa grave.
Por outro lado, prescreve-se quê a resolução não terá lugar, se o cumprimento das obrigações impostas ao lesado for coberto pelos riscos próprios do contrato.
Quanto aos negócios usurários (artigo 282.º), a lei começa por discriminar os vícios que servem de fundamento à anulação (a situação de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica). e acaba por restringir o núcleo dos casos relevantes, exigindo que através do negócio se tenham ilicitamente obtido alguns benefícios à custa do lesado e que estes benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados.
Menos apertado é o círculo de limitações traçado em volta da figura do abuso do direito (artigo 334.º), mas algumas nela se encontram também.
Primeiro, não pode taxar-se de ilegítimo qualquer uso do direito que colida com o sentimento de justiça do julgador, mas apenas o que exceda os limites impostos objectivamente ao exercício do respectivo titular.
Depois, nem todas as considerações de ordem ética interessam à legitimidade do exercício do direito, mas apenas as ditadas pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito. E como esta restrição pudesse não bastar para prevenir uma excessiva intervenção do tribunal na vida de certas relações, a lei exige ainda que haja um excesso manifesto - como quem diz indiscutível, franco, claro - dos tais limites impostos ao exercício do direito.
Com todas estas restrições, não se contesta que um vasto campo fica ainda franqueado à apreciação do julgador na esfera de actuação do titular do direito. Mas este é precisamente, como adiante se- mostrará pela função .social da propriedade, um dos pontos nevrálgicos do sistema, onde mais amplos horizontes a lei tem de rasgar aos deveres de vigilância dos tribunais.
Todas as reflexões precedentes se podem traduzir, em síntese, nas duas conclusões seguintes:
1.a O legislador procurou dar aos tribunais, como órgãos permanentes de aplicação do direito, os meios necessários para assegurarmos a vitalidade da nova ordem jurídica contra todas as incertezas do futuro.
2.a Não há motivos sérios para recear o mau uso que os juizes possam fazer dos instrumentos de renovação que a legislação civil coloca nas suas mãos.
No título dos contratos em especial, foi a locação, como era fácil de prever, o negócio de cuja apreciação nasceram observações mais divergentes entre os círculos de pessoas interessadas.
Das críticas movidas ao projecto, no meio de muitas inexactidões que não vale a pena rectificar, há uma que parte de um facto realmente exacto: muito poucas alterações de fundo foram introduzidas quer no regime do inquilinato, quer na disciplina do arrendamento rural. O legislador procurou menos reformar o instituto que concentrar num texto único toda a regulamentação do arrendamento dispersa por vários diplomas legislativos, sistematizar em termos hábeis os diferentes capítulos da locação, eliminar as contradições e sanar as deficiências da legislação vigente, e expurgar a nova lei de todos os preceitos de carácter transitório e de todas as disposições de puro direito local. Tarefa que não foi fácil, nem parece de pouca monta.
Desde que os autores não confondam a questão social da habitação, como problema de carácter político entregue nos seus complexos aspectos a múltiplos departamentos do Estado, com a regulamentação jurídica da locação, que é um simples instrumento do comércio privado, nenhum prejuízo advirá de o regime do arrendamento se manter no Código Civil, e algum proveito se poderá lucrar.
Como figuras do direito privado, é no Código Civil que o aluguer e o arrendamento têm a sede própria. E, porque a codificação imprime maior estabilidade ao direito, a inclusão do arrendamento no código representa um meio mais seguro de defesa da boa disciplina das relações entre senhorios e arrendatários contra a interferência perturbadora dos factores políticos, que a todo o momento tendem a insinuar-se no tema do inquilinato; ao mesmo tempo, esse critério acautela melhor o próprio Estado contra a tentação das providências precipitadas e contra, as frequentes arremetidas dos grupos de pres-