28 DE NOVEMBRO DE 1966 773
direito canónico, ao Estado apenas interessava a observância dos dois impedimentos da lei civil capazes de fundamentarem a recusa da transcrição.
E, além do entendimento erróneo dado ao preceito, alguns abusos se cometeram à sombra dele, que só mais tarde vieram a ser devidamente sanados.
O problema foi seriamente ponderado na redacção definitiva do projecto, o qual acabou por consignar de modo explícito a doutrina de que a dispensa legal do processo preliminar, se autoriza a celebração imediata do casamento e reduz os fundamentos de recusa da transcrição, não afasta nenhum dos impedimentos da lei civil, nem isenta os infractores das sanções correspondentes à ilicitude cometida. Além de não haver nenhuma razão para eximir os cônjuges das medidas, sobretudo de natureza civil, decretadas contra a inobservância dos impedimentos, a solução impõe-se ainda por ser a que melhor se coaduna com o espírito de mútua transigência que caracteriza o próprio texto concordatário.
E parece tanto mais defensável quanto é certo ter a lei civil eliminado entretanto o obstáculo que mais intolerável tornava, em certos casos, o acatamento dessa orientação. A autorização exigida aos pais dos nubentes menores, que funcionou como impedimento dirimente relativo até 1958 e que tão mal utilizada era, de facto, por muitos progenitores, converteu-a o Código do Registo Civil em mero fundamento de oposição, sujeito a apreciação jurisdicional.
Feito deste modo o balanço sumário da situação, é possível concluir que das duas inovações mais significativas do projecto em face do regime concordatário, ambas perfeitamente justificáveis à luz dos bons princípios, uma delas estende, na verdade, o reconhecimento da eficácia civil aos casamentos católicos celebrados em país estrangeiro, que não são abrangidos pelo acordo celebrado entre Portugal e a Santa Sé, ao passo que a outra afirma de modo explícito a inteira subordinação do casamento concordatário às exigências da lei civil, numa série importante de casos em que a doutrina é vivamente contestada por uns e seriamente posta em dúvida por outros.
E, perante este quadro singelo, adicionado às considerações que foram expostas a propósito do acordo de 1940, é-se naturalmente tentado a perguntar: Onde está o cesarismo ou o clericalismo da Concordata?
E, se a censura não pretende atingir as disposições já importadas da Concordata, onde o clericalismo ou o cesarismo do projecto do Código Civil?
A não ser que a vaga acusação lançada sobre o projecto se funde naquela simples alínea de um dos seus dois mil trezentos e tantos artigos, onde se consagra o impedimento do casamento civil fundado nas ordens maiores ou nos votos solenes ou equiparados.
A matéria, conquanto não tenha grande importância prática, é de sua natureza extremamente melindrosa, sendo eu o primeiro a recear que o teor da comunicação possa neste ponto ferir algumas legítimas susceptibilidades; a verdade, porém, é que não encontrei outra forma de mostrar, especialmente aos leigos do direito, os termos exactos em que a questão é posta à consideração do legislador.
O impedimento que se discute não foi inventado à última hora pelos juristas nacionais.
Vigora desde há muitos séculos, e ainda agora persiste, no direito canónico, por força do princípio chamado do celibato eclesiástico, quanto ao casamento católico; e proclama-o para «ambas as espécies de casamento», embora como impedimento impediente, o Código Civil de 1867 (artigo 1058.º, n.º 5.º), não obstante todo o liberalismo de que o diploma vinha impregnado.
As denominadas leis da família. pertencentes ao corpo da legislação laicista que marca o advento da República, é que eliminaram o impedimento. A partir de 1910, a doutrina aplicável passou a ser a seguinte: se um membro do clero, seja secular ou regular, ou uma religiosa prestar na repartição do registo civil a declaração de casamento, nenhum obstáculo se levanta à realização do contrato, nem que o sacerdote e a religiosa pretendam casar entre si. Nada impedirá sequer que eles, se quiserem, apareçam com as respectivas vestes na celebração solene do acto.
Nem a formação moral, nem o sentimento natural de pudor, nem o simples bom senso das pessoas, consentiram que alguma vez as coisas assumissem os foros de maior escândalo público a que o indiferentismo religioso da lei abre libérrimo as portas do registo civil. Mas o problema tinha naturalmente de ser examinado em todas as suas consequências, com a nova luz e com as novas sombras dos tempos que correm, numa reforma como a do Código Civil, em que o legislador é forçado a passar pelo crivo da razão todas as soluções da legislação vigente.
O autor do anteprojecto não teve a mais leve hesitação em propor a restauração do impedimento, cujo regime aperfeiçoou, por ser a doutrina que, observando o juramento formulado em plena liberdade pelas pessoas atingidas, menos feria os sentimentos religiosos das populações.
O projecto perfilhou a ideia, com uma ligeira modificação, que consistia em não admitir a convalidação imediata do casamento pelo facto de as autoridades eclesiásticas levantarem posteriormente a causa do impedimento, pois não se julgou conveniente que à Igreja fosse concedida, nestes casos, a possibilidade de decidir livremente, embora por via indirecta, acerca da validade ou nulidade do casamento civil.
Contudo, no seio da própria Igreja, enquanto uns aplaudiam sem reservas a medida, algumas vozes se levantaram contra a limitação do casamento civil, pugnando pela manutenção do regime vigente, que já sabeis qual seja.
Com que fundamentos?
Abstraindo de algumas afirmações inteiramente gratuitas, sustentou-se que o impedimento é condenável: por ser inconstitucional, pois ofende o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei; por destruir o celibato eclesiástico como acto livre e consciente; e por constituir uma abusiva intromissão do Estado na esfera dos actos religiosos.
Nenhuma das razões se mostra convincente.
O princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei tem por fim evitar as discriminações de capacidade jurídica entre os cidadãos portugueses, fundadas em qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo ou condição social, e visa ainda a garantir o direito de provimento nos cargos públicos, conforme a capacidade revelada ou os serviços prestados.
Por isso mesmo, muito avisadamente a Constituição ressalva logo do princípio igualitário, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família e, enquanto aos encargos ou vantagens dos cidadãos, as diferenças impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas.
Ora, a razão explicativa do impedimento matrimonial não está na qualidade de crente que têm as pessoas atingidas, nem tão pouco na sua condição de padres ou de religiosas; está no juramento que livremente prestaram, e no escândalo que provoca na consciência dos crentes o rompimento ostensivo dele, sobretudo através do casa-