774 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º43
incuto civil. É uma restrição que ofende tanto a Constituição como as regalias que as leis ordinárias concedam aos sacerdotes ou às religiosas em atenção à natureza especial do seu múnus, ou como a disposição concordatária que estabelece, em matéria de divórcio por exemplo, uma diferem a essencial de tratamento entre os casados civilmente e os que optaram pelo casamento católico.
Não reveste maior consistência o argumento extraído da natureza do celibato, muito ao sabor de certa mentalidade neoliberal da época pós-conciliar.
O facto do o direito chamar a si a tutela de certos valores, punindo quem os ofende, não priva de sentido, nem sequer lê beleza moral, a conduta das pessoas que os acatam espontaneamente e não pelo mero temor das sanções legais. Á maior parte dos indivíduos respeita a vida, a honra, a fazenda, o bom nome do próximo, sem perder um momento a cogitar no castigo que a lei comina para a violação dos bens colocados sob o manto protector da ordem jurídica; nem por isso as sanções deixam de ser necessárias, imprescindíveis ao convívio social, para aqueles que prevaricam... ou podem prevaricar!
De contrario, se toda a coacção exterior roubasse a beleza e sacrificasse a liberdade essencial do celibato, teríamos de começar por pedir ao direito canónico que eliminasse também as graves sanções com que a Igreja pune o casamento civil dos sacerdotes ou das religiosas.
Só resta acrescentar que mediante a proibição do casamento civil Aos sacerdotes ou às religiosas, enquanto não fossem reduzidos ao estado laical, o Estado não pretendia do modo nenhum dirigir ou impedir a prática de quaisquer actos religiosos. Queria simplesmente abster-se de colaborar num acto que, sendo reprovado pela Igreja, repugna à sensibilidade da generalidade das pessoas bem formadas, por se lhe afigurar que a atitude contrária, de completa indiferença pelos valores religiosos, não seria a mais consentâneo com o próprio espírito da concordata, que, sendo uma concordata de separação, como se tem afirmado, não é todavia uma concordata de hostilidade, nem sequer de indiferença reciproca pelos valores que na vida dos povos à Igreja e ao Estado incumbe zelar.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - A resposta às razões contraditadas conduziria, portanto, à manutenção do impedimento.
Porém, ao ser o problema de novo analisado, reconheceu-se que a eventualidade, prevista no projecto, da dispensa concedida pela autoridade eclesiástica competente será, quanto ao casamento civil, praticamente rara, se não impossível de verificar. O que as autoridades excepcionalmente permitem, nos últimos tempos com mais frequência que no passado, é o casamento católico. E o próprio casamento católico celebrado em análogas circunstâncias levanta dificuldades ponderosas quanto à publicidade e quanto ao registo, que não puderam ser ainda convenientemente estudadas pelas entidades interessadas.
Impôs-se nestes termos ao Governo, como solução mais aconselhável, a ideia de eliminar do código o impedimento que tanta celeuma levantou e de reservar o novo exame da matéria para momento mais oportuno, quando esteja concluída a revisão do direito canónico, que em tempos se anunciou, e quando se dissipem as dúvidas mais carregadas que no espírito dos fiéis suscitaram algumas das declarações conciliares relativas à liberdade religiosa.
Cumpre agora examinar o problema relativo à capacidade da mulher casada, não tanto porque as soluções propostas tenham sido directamente impugnadas e careçam de justificação, mas por se ter gerado em torno do tema uma grande confusão de ideias que convém esclarecer nas vésperas da entrada em vigor dos novos textos.
Fica assim posta de parte a matéria das nulidades matrimoniais.
É que os exemplos através dos quais se pretendeu combater a excessiva largueza dos critérios anulatórios fixados na lei nada provam em desabono do sistema, visto todos eles serem retidos, como sujidades que conspurcariam a boa doutrina, pelo filtro purificador da essencialidade do erro ou pelas malhas apertadas do conceito da coacção moral.
Quanto à situação jurídica da mulher casada, é já de todos sabido que o projecto deu um passo importante em frente, suprimindo as limitações que constituíam um injustificado ferrete de incapacidade, e mantendo apenas, no geral como casos de simples indisponibilidade, as restrições impostas pela necessária unidade do agregado familiar.
Ás disposições relativas à residência dos cônjuges, ao exercício de certas actividades fora do lar, à administração dos bens do casal, às providências administrativas que marido e mulher podem requerer, aos depósitos bancários da mulher, à alienação de bens próprios ou comuns, ao exercício do comércio por parte da mulher e à possibilidade de contrair dívidas, a elevação da comunhão de adquiridos à categoria de regime supletivo, a consagração da separação absoluta de bens como regime de completa separação entre os patrimónios dos casados, além de outros preceitos que seria fastidioso enumerar, trazem consigo umas vezes a ampliação directa, outras um acréscimo potencial, das faculdades outorgadas pelo direito civil à mulher casada.
As pessoas mais circunspectas e prevenidas, tal foi a modificação operada na matéria, mostraram as suas apreensões quanto a algumas das alterações previstas, em especial no que toca aos poderes de administração que à mulher é lícito reservar na convenção antenupcial, por admitirem que a liberalidade da lei seja capaz de incentivar a desagregação familiar que já hoje se começa a sentir em grau apreciável nos grandes meios citadinos.
Em compensação, também logo houve quem, desfraldando açodadamente e com grande desenvoltura o pendão do igualitarismo, considerasse insuficiente o progresso da legislação, censurando de algum modo o facto de se ter reputado um absurdo a tese da igualdade de direitos e deveres entre marido e mulher.
As palavras, mais que as ideias, desfrutam hoje de uma grande força no mundo; e a gente pasma a cada momento com a subserviência que manifestam perante o poder emotivo de palavras ocas, de abstracções sem conteúdo definido, de simples estandartes que se desfraldam ao vento das paixões, os próprios espíritos mais rebeldes à sã disciplina das ideias!
Vamos, pois, abstrair quanto possível do puro invólucro verbal das coisas e procurar as ideias que estão por detrás do problema concernente à posição jurídica da mulher casada, que surge agora em Portugal com uma acuidade semelhante à que já atingiu noutros países da Europa (*).
(1) Pode referir-se concretamente, a título de exemplo, do caso típico da Alemanha Ocidental, onde a questão da igualdade jurídica entre os cônjuges deu lugar a uma confusão análoga de ideias. Haja, .de facto, em vista as controvérsias, as dúvidas e as contradições que aí provocou, embora em plano mais elevado que entre nós, a interpretação e execução prática do preceito que na Constituição de 1949 proclamou a tese da igual consideração (die Gleichberechtigung) do homem e da mulher: Hans Dõlle, Familienrecht, i, 1964, pp. 26 e seguintes.