28 DE NOVEMBRO DE 1966 779
não harmonizar com a doutrina de alguns preceitos salutares do sistema, poderia causar as mais graves perturbações no seio das famílias.
Relativamente à posição jurídica dos filhos ilegítimos, a orientação do projecto mereceu algumas críticas; porém, falhas de razão.
Houve quem advogasse uma plena equiparação dos filhos ilegítimos à posteridade legítima, esquecendo que a doutrina nem é razoável, nem corresponde à tutela especial que as leis devem à família legalmente constituída.
O legislador foi tão longe quanto poderia ir, sem quebra dos bons princípios.
Assim, relativamente ao poder paternal, a lei atribui aos pais ilegítimos que hajam reconhecido voluntariamente o filho os mesmos direitos e deveres que têm os pais legítimos, à excepção do usufruto legal dos bens do filho menor.
Se à herança paterna forem apenas chamados filhos ou outros descendentes ilegítimos, as regras aplicáveis tanto à sucessão legítima como à sucessão legitimaria são as mesmas que vigoram para a posteridade legítima.
Só quando à herança concorram simultaneamente descendentes legítimos e ilegítimos a lei, como não deveria deixar de o fazer, concede aos primeiros um tratamento de superioridade, mediante a atribuição de uma quota sucessória maior. Pondo de lado a especiosa distinção que o direito vigente estabelece entre filhos perfilhados antes e filhos perfilhados depois do casamento, o novo código equipara todos os filhos ilegítimos, para a cada um deles atribuir uma quota igual (a metade do quinhão que toca a cada um dos legítimos.
É uma solução equilibrada, mas que marca, com a nitidez suficiente, a primazia de que desfruta a família regularmente constituída em face da que nasce dos frágeis liames das situações irregulares ou se prende nos laços condenáveis do adultério.
No largo capítulo das sucessões, uma única solução foi necessário sujeitar a novo exame: a relativa à posição sucessória do cônjuge sobrevivo.
O projecto apresentava no capítulo da família uma solução engenhosa para a partilha do casal, a qual permitia, sem risco aparente, pôr termo ao usufruto que a legislação vigente concede ao cônjuge sobrevivo, quando os herdeiros legítimos chamados a recolher a herança são os irmãos ou sobrinhos do falecido.
Foram, no entanto, especialmente sopesados os dois principais inconvenientes da solução proposta: por um lado, passaria à titularidade do cônjuge sobrevivo o domínio dos bens, que a convenção de um regime de separação tem por fim manter na família do finado e impedir se comunique, em detrimento dela, à família do outro consorte; por outro lado, o cônjuge supérstite seria forçado, no exercício da opção que lhe era imposta, a renunciar ao uso de bens que, constituindo a base económica ou material do lar, não é justo, nem razoável, que transitem para & posse imediata de outras pessoas.
Confrontando estes inconvenientes com os aspectos negativos, que são justamente imputados ao direito de usufruto em geral, julgou-se preferível manter neste ponto o regime fixado pela legislação em vigor, abandonando a curiosa sugestão do projecto.
Desta sorte, Sr. Presidente e Srs. Deputados, somos chegados ao ponto que a um tempo marca o termo da nossa longa exposição e assinala o encerramento oficial da mais árdua e da mais espinhosa entre todas as tarefas a que pudemos meter ombros em doze anos de intensa actividade governativa.
Apesar de muito, se ter falado já no longo período de trabalho que foi necessário para erguer no solo das instituições pátrias o verdadeiro padrão jurídico que é o novo Código Civil, muito poucos poderão imaginar a soma de canseiras, as resistências que foi necessário vencer, as vigílias, as apreensões, as ilusões desfeitas, os sacrifícios de toda a ordem, os desgostos até, que ficam como enterrados no sopé do monumento, por nem de longe transluzirem nos dois mil e tantos artigos de lei que são o pedestal e o remate escultórico de toda a obra.
A Providência, que tão generosa foi com este modesto servidor do direito ao conceder-lhe o honroso privilégio de participar no empreendimento, do mesmo passo lhe impõe o grato encargo de exprimir aos diferentes colaboradores do Governo o reconhecimento público de que são incontestáveis credores, já pelo penoso esforço que muitos despenderam, já pelo mérito excepcional da reforma que todos ajudaram a executar.
No agradecimento que a sociedade deve aos obreiros da nova lei, é justo colocar em plano bem elevado os professores e os assistentes das duas Faculdades de Direito, visto a substância essencial do código ser o produto do labor científico em que, de mãos dadas, colaboraram os civilistas das duas escolas. Mas não deve ser esquecido, nem o prestimoso e devotado auxílio que magistrados, advogados e técnicos dos registos e notariado prestaram nas sucessivas revisões do textos, nem as valiosas sugestões fornecidas por quem discretamente se dirigiu ao Ministério, ou por quem veio a público discutir .o projecto através da imprensa, quer pelas correcções e aperfeiçoamentos que muitos proporcionaram, quer pela maior autenticidade representativa que com as suas críticas e objecções imprimiram à missão legislativa do Governo.
O Ministério da Justiça contraiu ainda uma dívida especial de gratidão, que gostosamente me cumpre saldar, junto dos Ministérios da Educação Nacional e das Finanças: o primeiro, pelas facilidades que nunca regateou quanto à inestimável participação dos professores universitários nos estudos da codificação; o segundo, pelo apoio material que ao longo de vinte e dois anos concedeu à execução da reforma.
Penso que ninguém dará por malbaratado o tempo gasto, nem lamentará os sacrifícios que porventura haja feito.
Se a consagração nas formas lapidares da lei representa já a mais nobre coroação a que podem aspirar as conquistas do pensamento jurídico, seja no exercício da investigação científica, seja no desempenho da função docente, nenhuma outra empresa, mais que a reforma do direito civil, permitirá ao jurista conciliar os deveres cívicos que a comunidade lhe impõe com o culto da ciência a que a devoção profissional o obriga.
Pela extensão das matérias que abarca, pela profundidade dos conceitos que reflecte, pelos sectores da vida que abrange e é chamado a disciplinar, o Código Civil ficará sempre, na história do direito constituído, como uma das mensagens culturais mais expressivas da época a que pertence.
Se os acontecimentos políticos de 1834, no dizer de Oliveira .Martins, assinalam a passagem das fórmulas históricas e absolutistas para as fórmulas revolucionárias e individualistas; se a codificação levada a bom termo pelos homens de 1867 representa, no plano jurídico, a definitiva transição de uma sociedade feudal, de feição acentuadamente monástica e senhorial, para uma economia burguesa de vincada expressão liberal; com igual fundamento se pode asseverar que o novo diploma legislativo marca, no vasto sector do direito privado, a vira-