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DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 49 1028

acções dos pobres mortais que somos. Dias generosos em que nascem os génios, os santos, os heróis, os mártires, a alta estirpe dos melhores de todos nós. Dias negros, tristes como a noite escura, em que a morte, ceifeira implacável, escolhe as suas vítimas dentre os melhores de todos nós.

O dia 27 de Julho de 1970 foi um daqueles em que a nossa pátria se viu marcada pela dor infinda de ver partir para sempre um dos seus mais ilustres filhos: o Doutor António de Oliveira Salazar.

Em semelhantes sentimentos de pesar se debate agora a França perante o desaparecimento do mundo dos vivos dessa alta figura de político e de soldado que foi o general De Gaulle.

Duas árvores gigantes do pensamento europeu, expoentes eminentes da civilização ocidental, morreram para a vida, mas fixaram-se para a eternidade no bronze da história de que foram magníficos obreiros, sejam quais forem as humanas limitações que se venham a notar na portentosa obra realizada, marcada, aliás, por algumas semelhanças, mas também por algumas diferenças, a provar a enorme fertilidade das fontes em que se inspirou.

Estranhos desígnios de Deus!

Quando nos Jerónimos, à roda do féretro onde repousava Salazar, passava Portugal, nas suas figuras mais representativas, nas suas crianças, nas suas mulheres, no seu povo; quando por esse mundo fora se manifestava o sentimento mais pungente pela perda de um grande valor que nos deixava a todos mais pobres, perguntava-me intimamente, na imensa solidão de alma que nos cercava, por que partia ele numa hora tão perturbada, numa hora em que a, confiança no homem, no homem imagem de Deus, expressão da Sua divina vontade, é tão instante, é tão precisa, é tão flagrantemente necessária e imperiosa?!

Por que partia aquele em que toda a sua vida, em toda a sua actividade de pensador, de professor, de estadista, de cidadão, foi buscar a força extraordinária do carácter, o vigor excepcional do génio, a nobreza das atitudes em todas as circunstâncias, precisamente à compreensão total, ao entendimento perfeito, sentido no mais íntimo de si próprio, do homem integral, dos homens, corpo e espírito, que umas vezes se elevam aos mais altos cumes da virtude e do bem, da sabedoria e do amor, outras descem as mais baixas e tenebrosas regiões onde a alma se perde e a carne se corrompe?!

Por que partia o humanista, o acérrimo defensor da dignidade da pessoa humana, privilégio da espécie e único que a perder-se arrastará à maior miséria, porque o homem só é verdadeiramente mísero e mesquinho quando despojado dessa dignidade, quando a sua expressão divina se evola ou se nega, quando o espírito se submerge na massa compacta de um materialismo grosseiro e sem esperança?

For que partia ele, o homem austero, simples, o patriota insigne, que nas horas mais agitadas e graves, como nas mais tranquilas, nos momentos mais cruciantes, como nos mais auspiciosos, retomava serenamente, diligentemente, perseverantemente, a tarefa que tinha em mãos e que não mais tem fim, porque sendo obra do homem e para o homem, integrado embora na Família ou na comunidade a que pertence, só desaparecerá na consumação dos séculos?

Estranhos desígnios; de Deus!

Por que partia ele, desde menino e moço votado ao trabalho, desde tenra idade exemplo do seu semelhante, mando-o como um asceta mas também como um lutador, isto é, pugnando pelo seu aperfeiçoamento moral e intelectual, pela sua ascensão social, moldando por isso as instituições de sorte a manter íntegros os princípios superiores da ética e da justiça, de sorte a salvaguardar o prestígio dos valores do espírito?!

Por que partia ele, a quem a Pátria tanto devia, nos bons como dos maus tempos, intérprete fiel dos Réus interesses, defendidos sempre, intemeratamente, e luz da razão e dos direitos e obrigações decorrentes da nossa História, inflexível lidador da ordem, no progresso e na paz?!

Por que partia o combatente da primeira linha na lide das ideias ou na arena das acções e dos exemplos, quando os conceitos doutrinários ou filosóficos da civilização ocidental correm perigo iminente?!

Por que partia ele, para quem as honrarias, as riquezas, a glória, só tinham sentido quando representavam honra, riqueza e glória da sua Pátria ou da própria Humanidade?!

Para quem o terrível ofício de mandar era como um sacerdócio donde havia de tirar-se o maior proveito para a colectividade e, por reflexo, para cada um dos seus membros; para quem as provações teriam o sabor do cilício que não se deseja, mas não se repele; para quem os êxitos se avaliam apenas em função do bem geral que proporcionem.

Por que partia aquele que amorosamente se entregou, em abnegação completa, ao exaustivo trabalho de refazer, no domínio financeiro, económico e social, uma Pátria doente, cansada talvez do esforço despendido durante séculos, agitada por um certo romantismo na acção e na reflexão, mais habituada a dar do que a receber, trabalho que, para ser duradouro e eficaz, não poderia limitar-se a revisão das estruturas orgânicas do Poder e da Administração, mas teria de ir muito mais longe, pois como, aliás, tudo quanto aspire a projectar-se na real essência das coisas teria de incidir sobre o centro à volta do qual todas rodam, teria de incidir sobre a cultura, teria de incidir sobre a formação integral do próprio homem?!

Por que partia aquele que, encarando as mais puras virtudes do povo português, misto de universalismo humanista e de acrisolado amor ao torrão natal, havia de pôr a prova toda a gama das suas excepcionais faculdades de estadista para defender, intransigentemente, a integridade territorial da Nação, ameaçada de um lado por a vaga de ambições que caíra sobre o vazio deixado por algumas potências no final da 2.ª Grande Guerra, de outro lado pela deterioração espiritual do Ocidente, que se deixara rodopiar à mercê de tempestades bem contrárias aos seus interesses e a sua história?!

Foi daqui, deste caminho da Europa, que se ergueu a voz solitária de Salazar, orgulhosamente só contra correntes e marés, serena e firme, mudando, porventura, o curso dos acontecimentos, pois, de facto, a vozearia que por aí anda, eivada de alucinantes expressões políticas, intelectuais e espirituais que parecia invadir o mundo, vai ficando bloqueada pela grande "massa silenciosa", extremamente apreensiva diante das suicidas manifestações, projectadas na vida quotidiana das pessoas e do próprio Estado, à qual já se alia também, não raro, o brado de entidades responsáveis, apelando vigorosamente para as forças da razão e da justiça, do direito e da moral, da decência e do carácter, indispensáveis ao ordenamento das sociedades civilizadas.

E aqui estamos ainda hoje, e assim nos manteremos, a continuar a sua obra, que é o preito maior que podemos prestar a sua memória, como povo que se preza de a não ter perdido na voragem das alucinações, dos prevenções ou das ilusões colectivas.