27 DE NOVEMBRO DE 1970 1023
conducentes a robustecer as linhas dominantes do seu temperamento pessoal. Podemos salientar, entre elas, o pensamento social das encíclicas papais, em especial a encíclica designada Rerum Novarum, de Leão XIII, sobre a condição dos operários, a qual correspondia ao tipo de democracia por ele definido como «um facto histórico, uma corrente insuperável, uma conquista legítima perfeitamente conciliável com o catolicismo». Em segundo lugar, recebera a sugestão das doutrinas do integralismo lusitano, vulgarizada pela revista Nação Portuguesa e em diversas obras dos seus prosélitos, que procurava restabelecer os valores essenciais da nossa tradição nacional e iniciara, entre nós, o processo implacável ao parlamentarismo português no regime instituído pela República, em 1910.
Finalmente, aderira a uma escola sociológica que teve como animadores Lê Play, Tour du Pin e Edmond Demolins, autor de um livro então famoso A quoi ticnt la supériorité des Anglo-Saxons?. Nas próprias palavras de Salazar este grupo de sociólogos exaltava ca superioridade social dos particularistas sobre os comunitários». Os particularistas eram os Anglo-Saxões, que assentavam o seu sistema educativo na livre iniciativa e no sentimento da responsabilidade individual. Os comunitários éramos nós e os povos latinos, de uma maneira geral, em que a comunidade amparava e absorvia o indivíduo que nela encontrava as maiores vantagens com o mínimo de cooperação.
Estava então convencido de que o problema nacional em um problema de educação. Portanto - acentuava - de pouco valeria mudar de governo se não tratássemos, em primeiro lugar, de mudar os homens. E tivera ocasião de pôr em prática essas ideias como professor do Colégio da Via Sacra, em Viseu, que era «uma tentativa da adaptação a Portugal dos métodos e dos fins da educação inglesa».
A sua formação cultural e espiritual tivera ainda por complemento a especialização de um economista. Salazar fora discípulo de um dos mais distintos economistas portugueses, o professor Marnoco e Sousa. A cadeira regida por este mestre fora uma das conquistas dos novos planos de ensino do regime liberal da antiga Faculdade de Leis, que se transformara em Faculdade de Direito. Nela se havia revelado uma sequência de prelectores e de tratadistas do mais alto nível científico.
O curso ampliava a sua acção docente por uma abundante bibliografia, à disposição de professores e de alunos, em que se podiam consultar as melhores revistas publicadas no Mundo, as mais completas colecções de obras, as estatísticas mais recentes sobre a evolução económica. Os programas das lições rivalizavam com os professados, em Montpellier, em Toulouse e em Paris. Quando o Doutor Marnoco e Sousa faleceu, em 1916, Salazar sucedeu-lhe na cátedra. Assim a Economia Política, regida pelo novel professor, era apoiada por um centro universitário de informação e de investigação em que as fontes nacionais estavam largamente representadas.
Salazar podia dizer de si próprio, com verdade, que era «um rapaz com uma ideia séria», isto é, um pensamento de governo ... Já numa conferência pronunciada em Viseu no ano de 1910 expunha estas três ideias fundamentais que serviam de orientação às suas concepções políticas: a importância secundaria das formas de governo; as conquistas democráticas como realidades incontestáveis; a necessidade de as instruir, de lhes regular os movimentos, de os adaptar aos condicionalismos de uma época social e de um determinado agregado humano, segundo os ditames da escola sociológica de Lê Play e dos seus discípulos.
Mais tarde, escrevia ele que os homens de governo têm o seu sistema de ideias ou simplesmente as suas ideias se não tivessem conseguido determinar-lhes uma síntese superior. Ora, se houve estadista realmente fiel, inflexível, obediente aos princípios em que se inspirara, foi o Primeiro-Ministro português. Para ele existiam «três ou quatro, uma dúzia de ideias-mestras, ideias-mães de outras ideias, atitudes de espírito - dúvidas ou certezas ...». São estos ideias que vão nortear, precisar, informar e esclarecer a sua acção política em quarenta anos de governo - o mais longo governo da nossa história nos últimos dois séculos.
Constituíam elas os ingredientes que presidiram, não tonto à reforma da nossa mentalidade nacional, mas do nosso sistema e dos nossos costumes políticos. Nortearam todas as atitudes, todos os programas, todos os actos do homem que se nos apresenta como o guia do povo português e pretende oferecer-nos um modelo de instituições válido para a sua época e para a nossa psicologia social.
Armado com estas ideias-forças - como notou pertinentemente Paulo Valéry -, o estadista procura moldar a massa dos governados aos seus desígnios, às suas intenções e até às suas concepções de grandeza nacional. É então necessário - acentua ainda o grande pensador francês - que a mentalidade dos homens, sobre os quais exerce o Poder, seja expurgada, reelaborada, unificada e n sua espontaneidade provida de fórmulas simples e fortes que correspondam a todas as circunstâncias e previnam todas as objeccões. Ora, no caso de Salazar, estas fórmulas foram muito empregadas, principalmente no inicio da sua doutrinação:
Tudo pela Nação, nada contra a Nação.
É preciso deixar de fazer favores a alguns para poder distribuir justiça a todos.
Temos obrigação de sacrificar tudo por todos; não devemos sacrificar-nos todos por alguns.
Portugal pode ser, se quisermos, uma grande e próspera Nação.
Nas circunstâncias específicas da vida nacional os reformadores tomam naturalmente uma posição crítica em face dos erros e dos vícios da nossa conduta política; das nossas fraquezas individuais e dos nossos atrasos sociais; das carências de formação cívica de um povo que, em verdade, nunca se havia conseguido adaptar ao jogo das instituições parlamentares e ao uso das liberdades democráticas.
E desta maneira que o dualismo de autoridade-liberdade tem um significado relevante entre nós. Salazar, na construção do Regime, de que inegavelmente foi o principal obreiro, desejou conciliar estes termos antitéticos, dando, porém, a proeminência a autoridade e sacrificando, por consequência, algumas das liberdades consideradas fundamentais nos sistemas democráticos de tipo ocidental. Foi sempre um defensor acérrimo da autoridade, convencido de que pela sua manutenção - embora uma autoridade moderada pêlos nossos costumes e pelas instituições que pôs em funcionamento - se conseguiria a reeducação, a dignificação, a coesão e mesmo o progresso material do agregado nacional. Puderam então os seus adversários apodá-lo, fora de Portugal, de «ditador de gabinete».
A sua doutrina actuante, consignada na Constituição de 1938 e nas leis posteriores, fundamentava-se na oposição às instituições vigentes, tanto no nosso país como nas nações europeias enfraquecidas no pós-guerra, na manifesta decadência dos regimes representativos, na debilidade e na instabilidade dos governos, na incapacidade da Administração de resolver os problemas nacionais. Como já observámos, não só as doutrinas da democracia cristã, como o ideário da contra-revolução,