DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 61 1264
que os sectores profissionais de uma e outra acusaram, na apreciação pública dos problemas em causa, a ponto de muitas opiniões se mostrarem irredutíveis.
Continuando a confinar-me à análise sucinta de aspectos genéricos que as duas propostas de lei me suscitam, aludirei ainda ao que penso ser o erro de quantos julgam a expansão do teatro e do cinema fundamentalmente condicionada pela melhoria do teor de vida das populações. Esta convicção anda, em grande parte, longe da realidade, sabido que a elevação dos recursos materiais abre aos que dela beneficiam novas e crescentes modalidades de emprego dos tempos livres e tende a dispersá-los precisamente em prejuízo do interesse pelo teatro e pelo cinema...
Quero com isto significar que ca penetração do teatro e do cinema no público ou, melhor, «a penetração do público no teatro e no cinema» depende, em muito, da existência nas comunidades, nas famílias, nas pessoas, de um gosto esclarecido e forte pela arte e pela diversão sadia, o qual só pode radicar-se e desenvolver-se se se levar por diante, e em ritmo vivo, uma política de educação, a todos os níveis, das populações e em todos os parâmetros da cultura. O Plano de Educação Popular, de 1952, ficou, e foi pena, na primeira fase, pois A sua letra e o seu espírito apontavam claramente para lotos e ambiciosos objectivos, sendo certo ainda que não se aproveitaram, em toda a extensão, as virtualidades por ele abertas, nem as forças renovadoras e recuperadoras que despertou na consciência pública.
Precisarei melhor o meu pensamento, se disser que, numa altura em que muitos se debruçam, açodados e inquietos, sobre o problema da Universidade, é de recear que outros problemas igualmente importantes ou essenciais sejam relegados para o segundo plano das preocupações. Foi, infelizmente, o que aconteceu Até há cão muitos anos neste país, em que um escol intelectual reduzido, e parece que apostado em isolar-se e em impedir o alargamento da base do seu próprio recrutamento, se interessava quase tão somente pela chamada alta cultura, desdenhando ou esquecendo os questões essenciais do ensino das primeiras letras, da educação fundamental, da iniciação profissional e da formação artística de extensas camadas populacionais mergulhadas no analfabetismo durante gerações e gerações.
Importa não reincidir no erro e, por isso, não deve fiar-se a resolução dos problemas do teatro e do cinema apenas da revisão e actualização dos leis e dos regulamentos.
E não será ocioso acrescentar que o Estado não pode nem deve fazer tudo. Incumbe-lhe fomentar, proteger, coordenar, mas não lhe pertence - é-lhe mesmo vedado pela doutrina que, entre nós, o informa - substituir-se à iniciativa privada. Compete-lhe, sim, assegurar a harmonia dos interesses e estar atento à evolução das técnicas e prevenir ou evitar os desequilíbrios que ela possa provocar. Repare-se em como os elementos ligados ao cinema se queixaram da televisão, chegando alguns a pretender que fossem impostos sérios limites a sua expansão, como processo de atenuar a crise da arte e da indústria cinematográficas.
Há anos, porém, a vítima foi o teatro, perante o aparecimento e a difusão do cinema. Então a Câmara Corporativa referiu-se a questão em termos caracterizados por esta visão esquemática:
O cinema [dizia a Câmara Corporativa no seu parecer transcrito no Diário das Sessões, de 2 de Março de 1950] não roubou apenas o espaço vital necessário ao teatro: desviou dele a corrente do público, criando um espectáculo a baixo preço - «o teatro exportado em latas», na expressão de Bobert Florey-, com o qual o verdadeira teatro, cada vez mais caro, não podia competir.
Penso ser altura de se ultrapassar este coro desencontrado de lamentações ou acusações para se enfrentarem a sério os problemas que, desafiando a capacidade de decisão dos responsáveis e dos interessados, exigem, antes de mãos, uma serena, e objectiva análise das suas causas e repercussões e, de seguida, a formulação das soluções adequadas, através da norma jurídica, da estruturação ou reestruturação das instituições e serviços e da criação de uma consciência mais esclarecida e generalizada sobre o valor do teatro e do teatro como expressão de arte e instrumento de progresso cultural e social.
Assim sendo, há que aplaudir tudo o que se faça para colocar o "teatro e o cinema DD lugar cimeiro a que têm jus, assegurando-lhes condições de vida e gradual expansão.
Nesta linha de rumo, haverá que preparar os curtistes e os técnicos indispensáveis. Para tanto, deve começar-se pela remodelação dos estados do Conservatório Nacional e por um conjunto de providências, visando todos este aspecto nuclear ligado a formação de quantos, no âmbito profissional ou no domínio das meritórias e imprescindíveis actividades desinteressados dos amadores, hão-de estar, por natureza, na base da floração das nobres artes do palco e da tela.
Esto primeiro apontamento sobre aspectos mais concretos das propostos de lei oferece-me o grato ensejo de esclarecer que já o Ministro Galvão Teles, por proposta do director-geral do Ensino Superior e dos Belas-Artes, ordenou se procedesse aos estudos indispensáveis a reestruturação do Conservatório Nacional. Julgo saber que esses estudos atingiram fase adiantada na secção respectiva da Junta Nacional da Educação, sendo de esperar que em breve o Governo possa reformar, em profundidade, a escola que, desde 1836, funciona no antigo Convento dos Caetanos.
Será altura, na verdade, de promover, como se impõe, o desdobramento do Conservatório em dois estabelecimentos diferenciados e autónomos - um para a música e ópera e outro para o teatro -, sem se esquecer a indispensável criação de uma escola de bailado capaz de radicar e impulsionar as artes coreográficas em toda a gama das suas manifestações clássicas, modernos e populares.
Recorde-se que, já em 1885, foi criado por Almeida Garrett o Conservatório de Música, estabelecimento que, logo no ano seguinte, passando a designar-se «Conservatório Real de Lisboa», ficou constituído por três escolas diferentes: a de música, a dramática ou de declamação e a de dança e mímica. Esta orgânica polivalente foi por de mais unificada pela reforma de 1930, sem que daí resultasse qualquer beneficio pedagógico ou cultural.
Escusado será acentuar que escolas desse tipo não deveriam, nem deverão, porém, ter aquele cunho clássico exclusivo que tanto limita e anquilosa os estabelecimentos de ensino artístico que só se voltam para o estilo ou para as obras do passado, por mais expressivas e geniais que se apresentem. E isto é igualmente válido quer para o teatro, quer para a música, quer para o bailado.
Se assim se fizer, a afluência de alunos será bem mais expressiva, e a influência dessas escolas na expansão das actividades dramáticas, musicais e coreográficas há-de ser significativamente benéfica, como acontece nos países onde essa orientação tem vingado. Às inovações, as aberturas, as «liberalizações» desta natureza, nunca fizeram