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2116 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 105

tiveram ainda a pretensão de se fundamentarem nas nossas tradições de liberdade cívica e de representação popular das antigas cortes medievais.
Era - ou melhor, julgava-se que fosse - um compromisso entre as nossas tradições de direito público e o novo direito escrito, cujo primeiro texto tinha sido redigido na Constituição Americana de 1787. Essas tradições de direito público tinham, pelo menos, vigorado em Portugal até às Cortes convocadas por D. João IV no momento da Restauração. Foram perfeitamente definidas por um jurista contemporâneo, o Dr. Fr. Velasco de Gouveia:

Este poder [escrevia ele a propósito do poder político] consiste e está em toda a república, povo ou comunidade.

E explicava ainda melhor:

O poder régio dos reis está originalmente nos povos e nas repúblicas e que deles o recebem imediatamente.

Ora, quando a Constituição de 1822 declarava no seu artigo 26.º:

A soberania reside essencialmente na Nação ...
Nenhum indivíduo ou corporação exerce autoridade pública que não derive da mesma Nação.

repetia, por palavras modernas, as normas jurídicas consignadas nos textos e transmitidas pelos costumes da Nação Portuguesa. Se, por um lado, o novo direito constitucional restaurava as antigas liberdades, por outro lado, negava o absolutismo dos monarcas, o poder legislativo, inspectivo, policiativo, judiciário e executivo do rei, sumariado por estas palavras na linguagem preciosa do marquês de Pombal. Este poder dividia-se agora em executivo, legislativo e judicial, segundo o Espírito das Leis, de Montesquieu ...
A nossa Constituição, como todas as outras constituições europeias, iniciava a era das constituições escritas, espécie de contratos entre os representantes do povo e o Estado para regular a vida dos cidadãos e construir uma sociedade sobre novos moldes.
Até então, os povos e as nações tinham vivido e prosperado sem as constituições. Já o bom José de Maistre, mestre da contra-revolução, escrevia em 1809:

Um dos grandes erros do nosso século, que abraçou todos os erros, foi acreditar que uma constituição podia ser escrita e criada a priori. A razão e a experiência aprovavam que as leis fundamentais de uma nação nunca podiam ser escritas.

E chamava ele aos textos constitucionais verdadeiras quimeras. Mas, meus senhores, são muitas vezes as quimeras que governam os povos e até os conduzem aos mais altos destinos.
3. Apesar dos seus propósitos de renovação e da sinceridade do ideal revolucionário dos seus representantes, as Constituintes de 1821-1823 foram apenas um episódio, sem continuidade imediata, na evolução das nossas instituições políticas. Porventura a razão essencial da falência do Soberano Congresso provinha do facto de ele representar um acidente extemporâneo na nossa tradição monárquica, no paternalismo real, numa colectividade nacional mal preparada para receber e para compreender os direitos do homem e os conceitos de cidadão, tal como eles haviam sido formulados pelos «filósofos» da Revolução. Era uma planta exótica mal transplantada para a terra portuguesa. Como se escrevia na Gazeta de Lisboa por esta época:

Não se havia passado de «declamações vagas e estéreis, fanfarronadas de ânimo, valor e coragem que morriam, de medo, antes de acabarem de sair da boca de quem as proferia» 1.

A Constituição de 1822 reunia um conjunto de teorias arriscadas, .cujos efeitos ainda não se tinham experimentado. Coarctava o princípio da intervenção real num momento em que ela ainda estava bem viva na memória dos Portugueses. Era apenas uma explosão de romantismo político gerado numa coorte de militares e de académicos, sem apoio nem adesão da massa populacional, sem ligações com a organização administrativa do território. D. João VI, na proclamação que dissolvia as Cortes, podia designá-la como «a monstruosa Constituição», e acrescentava com alguma verdade que ela era «incompatível com os antigos hábitos, opiniões e necessidades do Povo Português». Dos debates e das resoluções das Constituintes e da Constituição por elas promulgada nada ficava de pé aparentemente. Eram iconoclàsticamente declaradas pelo rei «nulas e de nenhum efeito todas as inovações, decretos e leis emanadas das referidas Cortes, como destituídas de toda a autoridade, poder soberano e legislativo» 2. O Portugal histórico e tradicional retomava todos os seus direitos e a Revolução de 20 não fora mais do que uma nuvem de fumo dispersa por acto de vontade do soberano.
No entanto, uma parte do escol português, experimentado nas agruras da emigração, instruído pelas obras dos enciclopedistas, humilhada com as desgraças da Pátria, não prescindia do direito escrito como lei suprema do País. Já não se podia governar senão em termos constitucionais. Dizia uma quadra popular:

Já pouco tarda o momento
Da nossa consolação
Em que há-de baixar dos Céus
A nova Constituição 3.

O próprio D. João VI, apesar do seu realismo, da sua experiência amarga, quando revogou a Constituição de 1822, nomeou uma Junta para preparar o projecto da Carta de Lei Fundamental da Monarquia 4.
Não cumpriu, porém, a promessa desta Carta, que só seria outorgada, depois da sua morte, pelo filho primogénito, D. Pedro IV. O falecimento de D. João VI foi considerado pelo boletim clínico «a morte miais calamitosa para os Portugueses». E os factos vieram a confirmar esta asserção.
4. Desde a revogação da lei constitucional de 1822 a Nação ficara dividida em duas facções: a dos Liberais ou Constitucionalistas e a dos Absolutistas ou Realistas. Os primeiros propunham reformas e julgavam indispensável uma alteração do sistema de governo; os últimos apenas se contentavam com reformas superficiais, admitindo, porém, uma convocação das Cortes à maneira tradicional.
Foi neste clima de opinião - e passo em claro factos conhecidos de todos - que surgiu na barra de Lisboa, em 2 de Julho de 1826, a corveta Lealdade com a «Carta

1 Gazeta de Lisboa, 8 de Agosto de 1823.
2 Proclamação de 4 de Junho de 1824. Idem, suplemento ao n.º 133, de 5 de Junho de 1834.
3 António José Brandão, Sobre o Conceito de Constituição Política, p. 32.
4 Gazeta de Lisboa, de 21 de Junho de 1823.