2118 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 105
dãos; menos democrática - porque cerceava os impulsos da soberania popular, por intermédio de um sistema assaz complexo de pesos e de contrapesos, cujo funcionamento se destinava a refrear e a neutralizar todas as formas, políticas 7.
E a vida constitucional portuguesa passa a oscilar desde 1822 até aos nossos dias nestes dois pólos, nestes dois termos contraditórios: umas vezes reforça o poder da autoridade, outras vezes ensaia os princípios democráticos mais extremos. Sob muitos aspectos, a Constituição Política da República Portuguesa, promulgada em 21 de Agosto de 1911, revivia pela sua intenção democrática, pela reafirmação dos direitos individuais, pelo predomínio parlamentar e sua consequente iniciativa legislativa e, sobretudo, pela ausência do poder moderador, as Constituições de 1822 e de 1838. Com esta Constituição, e tendo em linha de conta o ardente idealismo, a elevação moral e até o desinteresse material dos propagandistas republicanos, caímos novamente nos excessos da demagogia, a pretexto de proclamarmos novamente as liberdades e garantias democráticas.
É mesmo de sublinhar que esta Constituição tenha como fontes principais não só a Constituição Brasileira de 1891 e as constituições do regime liberal de 1822 e 1838 - aquelas que tinham sobreposto as liberdades do indivíduo ao consenso dos interesses supremos da colectividade. Era, por consequência, a corrente individualista, provavelmente imanente da psicologia social ido povo português, que triunfava. Estava igualmente de acordo com os princípios do Contrato Social de Rousseau, que admitia a existência de direitos anteriores à própria sociedade, derivados da existência de um estado natural, anterior ao estado social. Esta teoria, segundo um notável constitucionalista português, leva a definir os direitos do indivíduo como liberdades e os direitos do Estado como domínio 8. Isto é, no pacto social a afirmação de cidadania primava sobre a constituição da própria cidade ...
Como acontecimentos calamitosos vieram a demonstrar nos anos compreendidos entre 1911 e 1926 - período limitado de quinze anos-, as leis constitucionais do regime, que se pode chamar com alguma propriedade a Primeira República Portuguesa, não se adaptavam ao estádio de evolução social e à mentalidade do agregado nacional. As virtudes e excelsas qualidades de alguns dos nossos estadistas diluíram-se e naufragaram num sistema constitucional que não assegurava nem a estabilidade das instituições nem os governos.
E foi assim que surgiu em 1926 a Segunda República Portuguesa, com a Constituição aprovada em 1933, ainda em vigor.
6. Esta nova ordem constitucional tem como objectivo adaptar-se às exigências temporais de um determinado momento histórico, como apreciou com a sua habitual justeza e a sua meridiana clareza o Prof. Marcelo Caetano 9. Nela se reunia ou se julgava reunir com largo espírito de assimilação o que a experiência tinha definido como superiormente útil e aproveitável e conservava-se, em obediência no respeito pelas liberdades humanas, tudo o que era possível haurir da Constituição de 1911, ainda que com cautelas e restrições que o tempo veio a provar serem inadequadas ao nosso sistema social.
7 António José Brandão, op. cit., p. 59.
8 Marnoco e Sousa, Constituição Política da República Portuguesa, pp. 7 e 37.
9 Tratado de Ciência Política e Direito Constitucional, pp. 450-469.
Nesta Constituição tornava-se visível a tendência presidencialista e o uso da faculdade legislativa do Governo. Introduziam-se disposições da Constituição de 1826; certos esquemas corporativos, tal como haviam sido definidos pelos doutrinários da contra-revolução portuguesa e ainda uma inspiração de natureza externa para reforçar a autoridade presidencial e o exercício do poder executivo de um primeiro-ministro ou Presidente do Conselho: a da Constituição da República Federal Alemã de Weimar. É bem notório que, para evitar os abusos do parlamentarismo das Constituintes de 1822 e da Constituição da República Portuguesa, se caiu no extremo oposto do predomínio do Executivo. Eram, porém, os sinais dos tempos e o reflexo de uma reacção antiparlamentar que sobrevinha na Europa depois da conflagração de 1939-1945. Afirma, no entanto, o Prof. Marcelo Caetano, com razão, que, apesar do desfavor em que se encontrava a ideologia democrática, não se deixaram de consignar mo texto alguns dos seus preceitos fundamentais.
Todavia, o seu princípio orientador, a sua força actuante residia na inclusão de um idos valores herdados da experiência constitucional portuguesa e já assente na tradição que produzira os melhores frutos: o famoso «poder moderador». No dizer ainda de Marcelo Caetano, os governos passavam a apoiar-se não nas assembleias parlamentares, mas, para usar das suas palavras, na «confiança do Chefe do Estado, do Presidente da República, que constituía assim, de direito e de facto, o fecho da abóbada constitucional» 10.
Pode concluir-se, portanto, que importa manter, revigorar e aperfeiçoar este (princípio orientador. Mas, como já ensinava o Prof. Marnoco e Sousa, as constituições políticas têm por objecto organizar os poderes do Estado e sancionar as garantias imprescindíveis da liberdade dos cidadãos. Devem estabelecer harmonia perfeita e fecunda entre o direito do Estado e o direito do indivíduo, entre as exigências da autoridade e as da liberdade 11. É, afinal, neste necessário equilíbrio entre a autoridade e a liberdade - uma autoridade que não se transforme em poder despótico ou totalitário, nem liberdades que se dissolvam na desordem e na anarquia - que se pode garantir uma vida constitucional sã e produtiva.
As constituições são ou devem ser obra do tempo, e não uma criação arbitrária dos homens. E, por consequência, numa fase de transformação da política nacional, num desafio ao imobilismo em que por vezes mergulhamos, na necessidade de obedecer aos condicionalismos de um novo ambiente social e económico que a proposta de revisão constitucional do Governo é presente a esta Câmara e à qual dou a minha aprovação na generalidade.
7. A mim, que não sou jurista, julgo que na sua essência esta proposta constitucional vem muito especialmente assegurar e concretizar as liberdades dos cidadãos portugueses, para além de outros pormenores de natureza jurisdicional. Como já acentuámos, a Constituição de 1933, embora, por singular paradoxo, alongando e especificando essas liberdades, levantara com o .decorrer do tempo barreiras ao seu pleno exercício. Liberdades que são ainda as formuladas pela primeira Constituição portuguesa - «ninguém deve ser preso sem culpa formada»; «a casa de todo o português é para ele um asilo»; liberdade de consciência religiosa; liberdade de expressão de pensamento e de associação; liberdade de viajar e de emigrar; o sigilo da correspondência ... São elas a pedra de toque
10 Tratado de Ciência Política e Direito Constitucional, pp. 450-469.
11 Op. cit., p. 4.