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29 DE JULHO DE 1971 2617

também sou - e inequivocamente o afirmo - adversário do regime de censura prévia, pediria licença para formular algumas observações sobre a matéria.
A instauração do regime de censura prévia, em 1933, correspondeu a uma necessidade da conjuntura política e social desse momento da nossa vida colectiva, e é nessa perspectiva que deverá ser avaliada. Os fenómenos sócio-
políticos que configuram uma dada situação histórica são sempre, embora muitas vezes não explicitamente, solidários entre si.
O sistema político nascido da Revolução de 28 de Maio, que rompeu, nos planos político, social, financeiro e económico, com a herança de um século de governação demo-liberal, era lógica e coerentemente obrigado a romper também com o legado de quase um século de imprensa liberal, visceralmente ligada aos hábitos e vícios do individualismo, do parlamentarismo, do jogo partidário e eleitoral.
Decerto que nesse legado avultam muitos valores positivos e esplendem grandes figuras de jornalistas, como o parecer da Câmara Corporativa não deixa pertinentemente de recordar. Mas, até o século de Luís XIV, que Voltaire considerou como uma das três épocas clássicas da história, tem o seu reverso e as suas misérias... Ao longo da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX são inúmeros os testemunhos qualificados, provindos de escritores e jornalistas, que denunciam o servilismo, a ignorância, o espírito de perfídia, rancor e intolerância que dominavam e irremediavelmente corrompiam grande parte da imprensa do tempo.
Eça de Queirós, cuja obra, cada vez mais viva, continua a fazer sorrir e pensar o homem português dos nossos dias, deixou nos seus romances, desde A Capital e O Conde de Abranhos até a Os Maias e à Correspondência de Fradique Mendes, um extenso e variado depoimento sobre tal processo de degradação. Ora, repito, o sistema político nascido do Movimento de 28 de Maio, que se propunha levar a cabo modificações fundamentais nas estruturas políticas, sociais e económicas do Pais, tinha também de realizar, concomitantemente, uma transformação profunda nos espíritos e nas mentalidades, e decerto não poderia cumprir esses desígnios em alterar o regime jurídico, os hábitos e as tendências da imprensa anteriormente existente.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No condicionalismo ideológico e político então prevalecente na Europa, o recurso à censura prévia apareceu certamente aos responsáveis pela governação como o meio mais eficaz e expedito para alcançar tal propósito. Infelizmente, por motivos de vária ordem, alguns de carácter internacional, prolongou-se por quase quatro décadas a solução que deveria ter sido rigorosamente provisória.

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Júlio Evangelista: - A exposição de V. Ex.ª tem sido tão erudita e, do ponto de vista formal, tão brilhante, tão convincente, que não resisto a pensar nas doutas afirmações que produziu.
V. Ex.ª leu possivelmente um ensaio de Paul Morand, escritor que não anda na voga, não merece o favor de certos meios, mas que, não obstante certas reservas, é merecedor de admiração. Trata-se do Elogio da Censura.
Nele diz que, se através dos tempos o regime de censura teve agravos e teve inconvenientes, nem por isso deverá ser esquecido o reverso da medalha, que é o de ter constituído para os escritores um dos «requintados constrangimentos» de que falava Paul Valéry. Por exemplo, ao constrangimento da rima e da métrica, para o poeta, ao constrangimento e apuramento do estilo, para o escritor, a censura terá feito incidir um outro constrangimento, de ordem social e de conveniência social. Acrescentava, em linguagem primorosa, que a censura, através de todos os inconvenientes, que aliás todos reconhecemos, obrigou o escritor a fazer da sua pena uma arma de subtileza, de acutilante subtileza.
E, por outro lado, sob o ângulo do leitor: a censura obrigou-o a ler com atenção especial, forçando-o a ler nas entrelinhas, a ler nas meias-palavras, a esforçar-se por apreender aquilo que o escritor quis mas não pôde dizer à vontade.
Não perfilho a doutrina, repito, mas quero dizer a V. Ex.ª e queria lembrar que, ao ouvi-lo com tanto brilho e com tanta elegância, estava a lembrar-me do ensaio de Paul Morand e ainda desta expressão do abade Galianni, quando se dirigia a Madame dÉpinay:

Sabe, minha senhora, o que reputo de sublime oratório? É a arte de dizer tudo sem ir parar à Bastilha.

No entanto, volto à minha e ao nosso tempo: com as limitações indispensáveis, sou pela liberdade de imprensa.

O Orador: - Muito obrigado, Sr. Deputado Júlio Evangelista, pelas palavras gentis que me quis dirigir.
Aproveito, já que citou Paul Valéry, escritor que muito admiro, para lembrar um comentário seu, lembrando palavras, dignas de ponderação, de um dos grandes pensadores do início do século XIX, Xavier de Maistre: «Os sapatos apertados fazem descobrir danças novas».

(Risos do Sr. Júlio Evangelista.)

O Orador: - No fundo, o significado é idêntico.

O Orador: - Os prejuízos decorrentes de tal situação foram de vária natureza - e não será o menor o facto de possuirmos hoje uma imprensa periódica habituada a uma cómoda irresponsabilidade -, embora não haja que ter em conta apenas resultados negativos. É certo que há quem prefira decididamente a aventura dos «barcos ébrios» ao sossego, que às vezes se volve em tédio, das grandes calmarias, se bem que, não raro, tal aventura venha a findar em escolhos e naufrágios ... De qualquer modo, a queixa de António Ferro, dirigida em 1932 ao Prof. Salazar, de que o lápis da censura era como um látego infamante a fustigar-lhe a pele, foi sem dúvida compartilhada por quantos, escritores e jornalistas, tendo bem vivas a dignidade do seu ofício e a consciência do seu valor, viram os seus textos mutilados e estropiados pelos cortes da censura.
É necessário acentuar, todavia, que o regime de censura instituído em 1933, se foi inquestionavelmente autoritário, nunca foi um regime dirigista que, como os regimes totalitários nazi ou comunista russo, impusesse aos jornalistas uma orientação ideológica dogmàticamente definida e aos escritores e artistas um credo estético rigidamente formulado e erigido em «ortodoxia». Pode-se propalar a acusação, mas ninguém será capaz de a demonstrar, de que tal regime autoritário impediu brutalmente a floração de grandes obras literárias. Foi de modo semelhante que os pensadores e críticos iluministas, jacobinos e liberais mal-