382 l SÉRIE-NÚMERO 12
jar que aquele filho morra ou até no desejo de o suprimir?
4.º E como ajudar aquelas que por muito jovens e sós, com medo da repressão social, são levadas a matar ao nascer o filho não desejado?
É verdade que a interrupção voluntária de gravidez nos atira sempre para o meio de terríveis conflitos de consciência. Se nos interessamos e lutamos pela legalização da interrupção voluntária de gravidez e sobretudo tendo em conta a condição das mulheres que a tal se decidem. É que a mulher tem que ter o direito, em qualquer circunstância, a decidir responsavelmente sobre o seu corpo. Diria mesmo, como aqui já foi dito pela Sr.ª Deputada Natália Correia, que é estranho que tenha que ser esta Assembleia constituída essencialmente por homens a decidir sobre tal problema.
No plano dos princípios a única atitude correcta sobre a interrupção voluntária de gravidez parece-nos portanto ser a dos anglo-saxões - «há um problema? Então é necessário resolvê-lo». Mantendo-me no meu pragmatismo diria que o problema reside unicamente em saber se a mulher grávida está ou não decidida a interromper a sua gravidez. Se está, devem-lhe ser facultadas as condições para que tal se passe com o máximo de segurança.
É evidente que me poderão dizer: mas se se admite como natural a interrupção voluntária de gravidez arriscamo-nos a vê-la multiplicar-se. Ao que mais uma vez um médico com experiência dos Serviços de Urgência responderá: «Mais ainda que aquilo que já se passa sem legislação?» É pouco provável. Aliás a experiência do Estado de Nova Iorque é significativa: das mulheres que alguma vez fizeram uma interrupção voluntária de gravidez apenas 1 % voltou a fazê-la.
Argumentarão ainda alguns que a interrupção voluntária de gravidez é, do ponto, de vista psicológico, traumatizante para a mulher. É verdade. É traumatizante. Mas quando a interrupção voluntária de gravidez é praticada por alguém incompetente e na clandestinidade a esse risco junta-se o da segurança da mulher, além de que o traumatismo psicológico é bem mais grave.
Mas além da mulher temos ainda que considerar o ponto de vista do embrião ou do feto. Não quero reabrir aqui a velha e ridícula discussão sobre o momento em que a alma, para aqueles que acreditam na alma, entra no corpo. Mas é certo, como diz Minkowski, professor de Neonatologia em Port Royal, que nos casos de eutanásia precoce - praticar uma interrupção voluntária de gravidez ou renunciar a reanimar um recém-nascido que se encontra em situação catastrófica - tomamos efectivamente muitas liberdades em relação à moral tradicional. É que nessas circunstâncias tentamos apesar de toda a nossa ternura para com a criança, colocar-nos no lugar da família. Reconheço que é um ponto de vista contestável mas o facto é que desconfio dos defensores de princípios cegos com todas as suas implicações sectárias e dogmáticas. A ideia que tenho da medicina é que é fundamentalmente uma relação entre indivíduos. O que nós, pediatras, tentamos fazer é limitar os estragos que podem causar-se às famílias e garantir a melhor qualidade de vida para as crianças que nascem. Podemos ser levados assim a cometer entorses ao respeito pela vida e sobretudo ao direito que tem o ser humano a dar a sua opinião sobre a sua própria existência - está aí aliás o grande argumento dos que recusam a interrupção voluntária de gravidez, dos que pensam que todo o ovo fecundado quaisquer que sejam as suas condições de existência ulteriores, qualquer que seja o prognóstico do ponto de vista cerebral ou até social, tem direito ao máximo de cuidados médicos.
Mas o facto é que desde que me ocupo de crianças vi muitas famílias destruídas pelo nascimento de um filho anormal, ou simplesmente de mais um filho normal não desejado. Se se trata de um primeiro filho anormal os pais recusam-se muitas vezes a ter um segundo, renunciando definitivamente a levar uma vida normal. Sabem o que é tratar no domicílio um atrasado mental de 18 ou 30 anos que faz as suas necessidades na cama? Sabem o que é alimentar um atrasado mental de 20 ou 30 anos que não engole? Espero que nunca tenham que passar por essa experiência. Desde 1950, altura em que foram publicados os primeiros trabalhos científicos sobre estes problemas, que se sabe que 99% dos pais de crianças anormais acabam por desejar, mais tarde ou mais cedo, no meio de um sentimento de culpabilidade terrível, que os seus filhos anormais morram. É obrigação da sociedade proteger os pais desta situação.
Jacques Monod, Prémio Nobel da Medicina e defensor da interrupção voluntária de gravidez, trabalhou anos e anos a tentar descobrir os fundamentos da vida.
Minkowski, defensor da interrupção voluntária de gravidez, Neonatologista, de Port Royal, tem trabalhado toda a sua vida a reanimar e a tratar grandes prematuros.
Simone Veil, essa espantosa mulher da Europa, de que os senhores se servem como exemplo do que deve ser a social democracia, criou e fez aprovar a lei que permite em França a interrupção voluntária de gravidez.
Aplausos do PS, da UEDS e da Sr. - Deputada Natália Correia, do PSD.
Monod, Minkowski, Madame Veil, Natália Correia, Zita Seabra, Teresa Ambrósio, nós, homens e mulheres que lutamos pela nossa dignidade, não somos criminosos, não somos infanticidas, quando aprovamos a legalização da interrupção voluntária de gravidez, somos apenas pessoas cheias de dúvidas à procura de viver melhor, quer dizer, mais dignamente. E nesta luta penso que mulher e homem são indissociáveis. Ao longo da minha vida, dos homens fui aprendendo um certo sentido da fraternidade. Pouco mais. Da mulher aprendi tudo o que há de essencial - o sentir, a felicidade, a sensibilidade. Acompanhá-las nesta luta pela sua integridade física e psíquica não é paternalismo balofo, é um dever, é uma obrigação nossa.
Ao longo dos últimos anos tudo foi dito sobre a interrupção voluntária de gravidez. Pouco mais podemos dizer de novo. Dois terços da população mundial beneficia de legislação que permite a interrupção voluntária de gravidez.
A interrupção voluntária de gravidez não é uma solução para muitos. Nenhuma mulher poderá ser obrigada a recorrer a ela contra sua vontade.
Mas é necessário que exista legislação adequada e por isso nós apoiaremos qualquer projecto sério nesse sentido, para que aquelas para quem a contracepção falhou, aquelas que, tendo concebido voluntariamente, sabem que o seu filho não será normal, aquelas para quem mais um filho será uma catástrofe psicológica ou mesmo económica, aquelas que não tendo outra possibilidade senão praticá-lo o possam fazer em segurança e de modo a que fique garantida a possibilidade de voltarem a ter filhos quando os desejarem.