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25 DE FEVEREIRO DE 1987 1831

A ciência jurídica suporta mal o desfavor da tecnocracia. Sofre com isso o rigor e padece a arrumação dos conceitos. Artesanalizado, o processo legislativo degrada-se. E tudo isto porque, instalado este belo Parlamento, demo-nos por quites com a democracia formal. Esquecidos de que, se ao deputado, que convém ser plúrimo na formação e na origem, compete a captação vivência! do direito no contacto com os cidadãos e, em última instância, a revelação e expressão da sua vontade, não lhe cabe, só por sê-lo, saber direito ou dominar a técnica legislativa.
A tarefa de formular leis, seja ao nível do projecto seja ao nível da proposta, deve competir a comissões especializadas de que esta Assembleia não dispõe.
Não às comissões permanentes, a que cabe o papel de miniparlamentos, de «parlamentos liofilizados», como já se lhes chamou, onde a vontade legislativa se define, imune aos constrangimentos da televisão e dos holofotes; mas a órgãos técnicos permanentes, especializados na ciência do direito, dominando a linguagem jurídica, familizarizados por larga experiência com a técnica de fazer as leis.
Não temos esses órgãos, como não temos gabinetes, mesas, cadeiras, telefones, assessoria para os deputados. Em boa verdade, temos o heroísmo de suprir a carência de tudo isso e de suportar estoicamente críticas de ineficácia que nela têm a sua raíz!...
E não me digam que não temos dinheiro! Nada há de mais caro do que os efeitos nocivos de uma lei má e pagamos todos os dias esse duro preço! Nada há de socialmente mais nocivo que o espectáculo do incumprimento da lei e estamos condenados ao dia a dia desse espectáculo.
Tomemos consciência disto: a partir de certo grau de desobediência à lei, deixaremos de ser uma comunidade civil e um Estado politicamente organizado!
Ora já se viu que não dispomos de Ministério da Justiça que se preocupe com isso. Não é - disse ele - guardião da lei. É espectador dela. A tal ponto que, repito, tendo o actual Ministro criado e posto a funcionar um Gabinete de Apoio Técnico-Legislativo, por sinal recheado de bons profissionais e destinado a desempenhar o importante papel de contribuir para a perfeição técnica dos diplomas dimanados do Governo -entre nós o mais prolífico legislador-, logo dele foi despojado para se o colocar ao nível da Presidência do Conselho, o que traduz a visão tecnocrática e liquidatária do Ministério da Justiça do actual Primeiro-Ministro.
Ou travamos este declive ou o Ministério da Justiça entra no rol das excrescências, limitado a processar as folhas dos vencimentos dos funcionários e a olear os computadores.
A esta crítica da qualidade das leis não fogem, sequer, as principais. As esperanças depositadas no novo Código Penal -a que dois mestres de Coimbra asseguraram excelente recorte técnico- foram neutralizadas pelo efectivo aumento da criminalidade e o agravado sobrepovoamento das prisões.
A reforma do Código de Processo Civil ficou-se por remendos que não tocam o fundo do enigma processual. Falta imaginação, falta arrojo, falta a espada que corte o nó górdio dos ritos seculares.
A reforma do Código de Processo Penal nasceu inconstitucional, ia jurar que, mesmo na sua nova versão, inconstitucional continua e não creio que represente, ela também, o pacto com a novidade de que a jurisdição penal precisa. Não existem criados, de resto, os meios necessários à sua efectiva aplicação!
A nova lei das sociedades, de perfeccionismo em perfeccionismo, acabou por vir à luz do dia recheada de imperfeições. Excessivamente casuísta e miudinha, regulamentar até à obcessão, logomáquica, palavrosa, mal escrita, divorciada não raro dos concretos melindres da vida das sociedades.
Uma vacatio legis de dois meses - aliás, de férias -, apesar de não ter sido objecto de discussão pública, a recusa do tempo normalmente necessário à adaptação dos pactos sociais das sociedades, o mistério em torno do que nela é imperativo ou supletivo, a não publicação simultânea das alterações ao registo comercial e, enfim, a rejeição do produto final pelo principal autor do projecto são -passe o atrevimento do diagnóstico - do foro psiquiátrico!...
Quer dizer: quando o Ministério da Justiça acorda do seu coma profundo para legislar apetece ministrar-lhe um sedativo para que volte a adormecer antes que de novo legisle!...
Pior do que uma lei má é o desconhecimento das boas. É sabido que, nos termos da Constituição «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei».
Constitui também um regalo cívico podermos ler, na matriz das leis, que «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado ou privado de qualquer direito [... ] em razão da sua situação económica ou condição social».
Excelente para cozinhar utopias é ainda o princípio segundo o qual «só podem ser criminosos os indivíduos que têm a necessária inteligência e liberdade».
Descendo à terra por um fio de luz, como o Cristo do poema de Pessoa, que vemos nós? Que nem os mais sábios conhecem todas as leis; que os mais ignorantes não conhecem nenhuma, embora tenham vaga notícia das que os obrigam a pagar impostos; que ninguém a esse respeito informa ninguém, que, apesar disso, a ignorância da lei a ninguém aproveita, sendo a sanção correspondente à sua violação tão pesada para o douto como para o néscio; que a justiça é cara e os bons profissionais do foro caríssimos e que, apesar disso, ninguém pode ser prejudicado ou privado do acesso a ela por não ter com que pagá-la!
Para a fome, há sempre a sopa dos pobres!
Para a doença, há sempre a Mitra!
Para o analfabetismo retardado há, de década em década, um assomo de vergonha que assopra a brasa quase extinta de uma fugaz campanha nacional contra o analfabetismo!
Quem não tem casa, tem barraca!
Quem não tem roupa, tem só por deferência de Deus o frio em conformidade!
Só para quem não conhece as leis não há remédio! Quem fez o mal julgando que praticava o bem, quem errou supondo que estava certo, quem o injusto com o justo confundiu, não é réu do crime de ser ignorante, é réu do crime que ignorava! E não é condenado por ser elevado o preço da justiça, é condenado por não ter com que pagar esse preço!
Que horror, Srs. Deputados! Foi este o mundo que para nós quisemos? É este ainda o mundo que para nós queremos?
A é injustamente acusado. Mas é inculto e pobre. Não alcança sequer de que o acusam. Entra num tribunal onde se fala uma linguagem que para ele é chi-