790 I SÉRIE-NÚMERO 22
de combate soviéticos iniciaram a sua retirada e foram cortados os arames farpados das fronteiras.
Mas é também particularmente significativo que o encontro Bush-Gorbatchev dos passados dias 2 e 3 se tenha realizado no Mediterrâneo, berço mesmo da nossa cultura europeia. O que não pode deixar de representar, em especial pela importância das conclusões que daí saíram, o reconhecimento da Europa como o «lar comum», embora com vários apartamentos e várias portas e janelas, na metáfora tão cara a Gorbatchev.
As condicionantes deste movimento de transformação, primeiro social, depois político, são bem conhecidas. Está, em curso, e de forma particularmente acelerada, uma verdadeira revolução científica e tecnológica que nos toca a todos, no nosso dia-a-dia, nas pequenas tarefas profissionais ou até caseiras; esta transformação acarreta, por seu turno, mudanças radicais ao nível da informação, que ganha em importância e em fluidez, chegando até nós em doses maciças, a exigir controlos de qualidade e de fiabilidade e cada vez maior e melhor formação para a interpretar; mas, simultaneamente, ganham cada vez maior dimensão problemas globais que se tornaram vitais para a humanidade: a protecção do ambiente e a escassez dos recursos naturais.
E se é certo que novas respostas vêm todos os dias sendo dadas a estas questões, também não é menos verdade que, ao nível da humanidade em geral, se tem agudizado, por forma dramática, as contradições sociais. O mundo torna-se cada vez mais pequeno mas as desigualdades acentuam-se e às sociedades de consumo, de lazer e de prazer contrapõem-se, dolorosamente, povos dizimados pela fome, pela guerra, pela droga.
E isto passa-se não só na habitual dicotomia Norte-Sul, povos desenvolvidos/povos subdesenvolvidos, mas também dentro das nossas próprias sociedades ditas evoluídas ou desenvolvidas, onde grassa a miséria e o desemprego, lado a lado com a opulência e o esbanjamento.
Situação a exigir cada vez maior coordenação de esforços, porque reveladora de uma interdependência essencial.
Aliás, as próprias transformações no Leste fazem necessariamente surgir uma nova forma de interdependência, que já não tem a ver directamente com a América Latina, o Mediterrâneo ou a África Negra, e que, decerto, o meu querido amigo e ex-colega no Parlamento Europeu Fernando Condesso, que não se encontra presente nesta Câmara, não desdenharia ter considerado no seu recente livro A Europa e a Força da Interdependência, que me permito nesta ocasião felicitar pela excelência e oportunidade do seu trabalho.
É que não pode passar despercebido, num debate como este, como, obviamente, não o foi já ao mais alto nível do diálogo Gorbatchev-Bush, que, para além das liberdades e dos direitos cívicos, que constituem o cerne da transformação política nos vários países do Leste, há questões económicas e sociais extremamente importantes e urgentes, cuja não resolução atempada pode, no limite, comprometer o êxito destas transformações.
Porque elas não são fáceis nem são evidentes. E por isso, será pouco menos do que puro farisaísmo saudá-las exaltadamente por um lado, mas não se mostrar disposto a contribuir, de facto, para a criação e o reforço das condições materiais que lhe são essenciais.
Não temos dúvidas de que «as pessoas estão cansadas de tensões e de confrontação» e desejosas de paz. Mas isso passa, indiscutivelmente, por condições económicas
que permitam a estabilidade e proporcionem bem-estar social. Sem a realização destas condições de base, todas as conquistas políticas podem estar votadas ao fracasso.
Penso, como não pode deixar de ser, em especial, nos casos da Polónia e da República Democrática Alemã e, em particular, na questão da «reunificação» da Alemanha. E se me preocupa evidentemente o sentido político desta evolução, não me aflige menos a resposta que todos teremos de dar, e temos responsabilidade de dar, aos legítimos anseios e expectativas de povos que abrem, tão de repente, para um mundo diverso, desconhecido, quiçá mitificado no pior sentido.
É urgente, é importante, é inadiável que o deslumbramento da descoberta das virtualidades do viver em paz e em liberdade não se converta numa profunda desilusão geradora de desespero e de descrença, decerto bem mais profunda do que aquela que o cepticismo de décadas de quem já vive «deste lado» acumulou em relação à «democracia real», do mesmo modo que, do outro lado, se gerou relativamente ao «socialismo real», o que reforça a minha ideia base de uma nova interdependência e de uma outra solidariedade no trilhar do caminho comum. Em que sentido?
Para mim, claramente no sentido do reforço de uma unidade europeia mais vasta e mais alargada.
200 anos depois da Revolução Francesa, a vitória da liberalização a leste deve servir para o reforço de uma Europa cada vez mais unida e coesa, Europa que, no limite, e em expressão bem conhecida, vai do Atlântico. onde nos situamos, aos Urais. Creio sinceramente que esta via é a única capaz não só de dar um novo impulso a todos os movimentos do federalismo europeu que se encontravam meio adormecidos no seio da CEE, mas de resolver contradições de outro modo insanáveis, se se ressuscitarem velhos mitos de hegemonias nacionalistas ou novas questões de separatismo ou de divisionismo entre os povos e as nações. E este é um risco bem real e próximo, não só no seio da Rússia, mas mesmo no Centro da Europa de hoje.
O que é particularmente dramático na nossa circunstância actual não será talvez a natureza das transformações que se operam por toda a parte no mundo e, em especial, na Europa. Muitos dirão mesmo que a humanidade já passou por mutações bem mais profundas. No entanto, o que é verdadeiramente novo e único é que, pela primeira vez na História, as mudanças surgem à escala mundial e é a nível de todo o globo que as opções tem de ser tomadas.
Como é também novo e único a consciência que todos temos de estar a fazer história de uma maneira muito diversa da do outro que fazia gramática sem o saber.
Esta consciência que temos de ser simultaneamente autores e actores da história dos nossos dias imputa-nos uma responsabilidade acrescida que não podemos recusar.
Num sentido bem diferente do de Sartre, mas sem enjeitar a sua origem, estamos condenados a ser livres e, com isso, a tomar decisões fundamentais, com a consciência do seu alcance.
Essa a razão por que este Parlamento só se prestigiaria se, e ao mesmo tempo que se congratulasse com a queda do Muro de Berlim, e tudo o que ele significa, e saudasse o espírito de diálogo demonstrado no encontro Gorbatchev-Bush, apelasse, à semelhança do que já fez o Parlamento italiano, em votação por unanimidade, no sentido de ser inscrita, na ordem do próximo Conselho Europeu, a questão do «projecto de constituição europeia»,