988 I SÉRIE-NÚMERO 27
Porque é justo lembrá-lo, hoje e aqui, a opressão dos povos e o desprezo pelos direitos dos indivíduos não foi, nem é, monopólio dos países do Leste. Por todo o mundo continuam a proliferar regimes sob os quais os homens sofrem, lutam e morrem, esmagados pela injustiça, pela doença, pela fome, sob a batuta de governos corruptos e à ordem de interesses económicos gigantescos e tentaculares conhecidos por todos e em regra paulatinamente tolerados pelo mundo ocidental.
Esquecer este quadro, quando rios congratulamos com a conquista de outras liberdades, seria uma hipocrisia sem limites.
Mas, Sr. Presidente, Srs. Deputados, se as transformações vêm sendo por todo o lado espectaculares, não é por certo exagero dizer que Portugal não escapou à regra e que, nos limites que definem os contornos da sociedade portuguesa, sociedade democrática e livre, os acontecimentos do último ano marcaram de forma iniludível o início do virar de página sobre uma governação e uma política que não deixarão "saudades, política onde a arrogância, o clientelismo, a incompetência, a falta de transparência, a ausência de respeito pelo direito dos cidadãos a uma informação aberta sobre os negócios do Estado se amalgamaram e amalgamam, com resultados dia a dia mais evidentes.
As desigualdades sociais acentuaram-se a um ponto tal que é difícil, senão impossível, calar o escândalo da ostentação de uns poucos face à miséria e à mediania de tantos. Dir-se-ia, para parafrasear alguém, que nunca tantos empobreceram tanto para enriquecer tão poucos.
O crescimento económico, factor integrante do desenvolvimento, serviu apenas para cavar mais fundo o fosso dessas desigualdades.
Os conflitos sociais agravaram-se a todos os níveis e o choque entre o Estado, e a sociedade civil estendeu-se aos mais diversos sectores da sociedade portuguesa.
Não obstante, surdo ao aviso que foram as eleições europeias, fechado ao diálogo, com' a certeza de quem se pretende sem dúvidas e acredita que raramente se engana, o Primeiro-Ministro e o Governo, longe de arrepiarem caminho, prosseguiram no mesmo trilho.
Os ministros eram intocáveis, acima de toda a suspeita, ao abrigo de toda a crítica, e invocar a sua substituição heresia de fanáticos antipatriotas.
Os ministros estavam certos, as políticas estavam certas e o Primeiro-Ministro, esse, por definição, continuava a não ter dúvidas e a não se enganar.
O povo português havia de lhes estar grato e a televisão, instrumento dócil, lá estava atenta, veneradora e obrigada, para lhes promover a imagem, transmitir o rosto de um povo contente e calar a voz dos que ousavam perturbar o idílio.
Só que as eleições autárquicas vieram, de forma crua e brutal, mostrar que o povo não estava grato, mas. começava, isso sim, a estar farto.
E eis que a cizânia se instala nos arraiais do Governo e do seu partido e que tudo quanto antes era, aos olhos do Primeiro-Ministro, impensável se torna, no espaço de dias, na saída para o desastre.
O Primeiro-Ministro, depois de um momento de espanto, de tropeço nos resultados eleitorais (mal informado que estava, ao que nos veio dizer), dá o dito por não dito e decide-se (ou vê-se obrigado) a um arremedo de remodelação, que é o retrato a corpo inteiro da sua maneira de governar, do seu modo de entender a democracia, do seu jeito canhoto de estar na política.
E, nesse seu jeito canhoto, ofereceu-nos õ espectáculo insólito de um primeiro-ministro que convoca a imprensa, a rádio e a televisão para lhes dizer que não tem nada a dizer-lhes, isto 6, para anunciar que não vai fazer nada e que 15 dias depois acha bastante uma simples nota oficiosa para informar o País de que afinal sempre ia fazer qualquer coisa. Que falta nos faz, nestas ocasiões, o azorrague de um Eça!
Mas, Sr. Presidente, Srs.. Deputados, tenhamos a indulgência bastante para reconhecer que aqui o insólito tem de ser compreendido. É que a remodelação tantas vezes desmentida surge obscura, com um sentido político nebuloso, com um significado que o laconismo das notícias oficiais não ajuda a entender.
Na verdade, mistura duas remodelações numa só. Remodelação governamental e remodelação partidária, onde objectivos partidários e de governo e funções governamentais e partidárias se confundem.
O Vice-Primeiro-Ministro, vice-presidente do PSD, segunda figura do Governo e do partido, sai batendo a porta e proclamando à sua desconfiança no. Governo, com a metáfora do abrandamento da confiança (o léxico político enriquece-se todos os dias) que o Primeiro-Ministro nele depositava. Um outro 6 despedido em cinco' minutos, sabemo-lo agora: falara de mais, dissera porventura o que pensava, mas decerto devia ler ficado calado. Dois outros aparecem como que imolados às exigências do Partido Socialista, num preito tardio à transparência da Administração Pública, transparência que ainda nas vésperas o Primeiro-Ministro, não admitia que pudesse ser posta em causa. Finalmente, um outro paga o preço da sua inabilidade.
Para segundas núpcias, o anúncio de novos ministros, a sublinhar a desordem em que tudo foi feito.
No eseuro fica o sentido político da remodelação. Nenhum, afinal, explica-nos o ex-Ministro Álvaro Barreto: «Os cinco nomes adiantados não irão- protagonizar a mudança de que se precisa.»
Por dar fica a explicação do seu alcance e do seu significado, explicação a que os cidadãos tem direito.- um dos tais direitos com os quais o Prof. Cavaco. Silva parece não se conformar.
Remodelação tardia, coxa, cinzenta, que não traduz nem induz qualquer alteração nas orientações e opções do Executivo. E apenas a confirmação do estilo e do modo de governar a que o Primeiro-Ministro nos habituou, a confirmação da desorientação que se instalou, o prenúncio de uma crise cujos contornos começam a definir-se. Remodelação que - e cito de novo o engenheiro Álvaro Barreto- «não restabelece a confiança da opinião pública». Neste caso, quem o afirma é certamente insuspeito.
Com o Governo em queda, com a crise instalada no PSD, as perspectivas, num momento em que se avizinha a data da integração plena na CEE, não deixam margem para que nos regozijemos.
O tempo perdido dificilmente será recuperado. A delapidação dos fundos que poderiam ter sido suporte para as transformações necessárias a essa integração é irremediável. O calendário não perdoa. O modo incontrolado como se vem processando a penetração de capitais estrangeiros, que vão arredando e subalternizando progressivamente as empresas portuguesas, traz consigo o risco evidente de que num futuro próximo vejamos não apenas as grandes decisões macroeconómicas tomadas em Bruxelas, mas as próprias decisões ao nível microeconómico ditadas em centros exteriores.