O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

12 DE JULHO DE 1990 3441

Produzindo e reproduzindo símbolos e ideias que apelam para valores solidamente enraizados e largamente partilhados no imaginário social, mas que só têm tido como único resultado o tentar esconder uma incapacidade de fazer as reformas necessárias.
Definiu V. Ex.ª, Sr. Ministro, na apresentação dos objectivos do programa «O Cidadão e a Justiça», as áreas de intervenção. A primeira delas seria a da transparência da administração da justiça.
Para o cidadão comum, posição na qual, de novo, afirmamos desejar colocar-nos na presente interpelação, o que assistimos é a uma aplicação da justiça em que as decisões e o secretismo do processo se impõem.
É impensável para um cidadão entrar num tribunal, pedir o processo onde é parte e, passivamente, consultá-lo.
Tal comportamento, que parece aos olhos de qualquer pessoa como normal, será sempre encarado, por toda a máquina da administração da justiça, não como o exercício de um direito por parte do cidadão, mas como uma indesejável intromissão.
A aplicação da justiça tem de ser transparente, quer nos processos utilizados, quer nas relações com o cidadão. O que é que tem sido feito neste sentido?
Outro objectivo do programa «O Cidadão e a Justiça» era o da facilidade de acesso ao sistema da justiça.
Também aqui nada de concreto foi feito.
Efectivamente, em 29 de Dezembro de 1987, foi publicado o decreto-lei que regulamenta o acesso ao direito.
Tem o mesmo algumas potencialidades, ainda inexploradas e fundamentalmente inexploráveis por uma passividade das estruturas incumbidas de aplicar a justiça e também complementada por uma ausência normativa nos campos que o artigo 1.º do diploma abre no seguimento da directiva comunitária. Onde estão as normas, os regulamentos, as disposições concretizadoras de que a ninguém será dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou por insuficiência de meios económicos, conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos?
Como pode um cidadão das muitas vilas e aldeias do interior do nosso país, onde não há advogados, onde têm de se deslocar dezenas de quilómetros para encontrar um tribunal, ver assegurado o exercício do acesso ao direito?
Srs. Membros do Governo, a lei está feita para quem vive nas grandes cidades ou nos seus subúrbios (e mesmo para estes as dificuldades e insuficiências são inúmeras).
Onde está, Sr. Ministro, o acordo com a Ordem dos Advogados para pagamento das consultas de que, porventura, os cidadãos de menor condição social ou cultural precisem?
A seriedade que a justiça e a sua aplicação devem merecer não se compadece com raciocínios mais ou menos formais e simbólicos.
Mas voltemos ao cidadão do interior, que clama por justiça.
Imaginemo-lo de Vila de Rei, por fatalidade atropelado próximo da Sertã e com uma grave incapacidade.
E referimos, Sr. Ministro, Vila de Rei e Sertã porque são localidades situadas no centro geográfico de Portugal e também perto daquelas em que V. Ex.ª começou a sua vida de magistrado.
São dez léguas bem medidas a distância de Vila de Rei de Castelo Branco e três para a Sertã. Estradas de curvas e contracurvas, cujo piso, apesar das verbas comunitárias, por enquanto ainda a chegar todos os dias, se encontra quase tão mau como o estado da justiça em Portugal.
E este homem, para clamar justiça, tem de calcorrear dois quilómetros a pé, apanhar a carreira das cinco e meia da manhã, esperar na Sertã pela ligação para, pelo raiar das 10, estar em Castelo Branco, sede do círculo judicial.
Aí chegado, o cidadão de Vila de Rei terá de obter conferência com um dos juízes da comarca, que oficiará ao conselho distrital da Ordem dos Advogados, a solicitar a indicação de um advogado.
Dois ou três meses depois o cidadão de Vila de Rei receberá uma carta de um advogado de Castelo Branco, anunciando-lhe a boa nova de que lhe foi concedido o apoio judiciário e ele o advogado escolhido para o representar.
E o cidadão de Vila de Rei lá volta a Castelo Branco.
E tudo isto se repete!
E tudo isto se repete, vezes e mais vezes!
E tudo isto se repete, ainda mais uma vez, no dia do julgamento, depois de, pelo menos, um adiamento, pois que o advogado da seguradora é de Lisboa. E o cidadão de Vila de Rei, na sua deslocação a Castelo Branco, passa na Sertã, vê o tribunal da vila e lá continua até Castelo Branco.
Com ele vão as testemunhas da desgraça que lhe aconteceu. E chegados a Castelo Branco, e iniciado o julgamento, chega-se à conclusão de que há que ver o local do acidente. É meio-dia e a carreira é só às seis, mas... manda quem pode, e o juíz quer ver o local. E vá que se faz tarde!
E o cidadão de Vila de Rei tem de alugar um carro até ao local do acidente, passando de novo ao lado do tribunal da Sertã.
E o seu compadre que vai no banco traseiro do carro de praça diz em desabafo: «Para que é que servirá o tribunal da Sertã?» E nós, Sr. Ministro, não poderemos deixar de lhe endereçar a pergunta.
Com a criação dos tribunais de círculo, copiados acriticamente de França, acabou-se com uma tradição secular da chamada justiça à porta de casa, que já Gil Vicente referia.
Porquê, Sr. Ministro?
É assim que não se impede o acesso ao direito e à justiça dos mais necessitados?
Mas, infelizmente, a história não fica por aqui.
Do julgamento, que até correu bem para o cidadão, há recurso para o Tribunal da Relação. E deste, por que não um saltinho até ao Supremo para decidir um destes pontos esquisitos que os profissionais do foro tanto gostam de discutir?
E passam-se os meses e passam-se os anos e o cidadão de Vila de Rei arrasta-se, e arrastam-se os tempos, mas receber... Bom, há sempre mais qualquer coisa, que isto de pagar e morrer quanto mais tarde puder ser...
E a máquina de aplicação da justiça a mostrar-se, sempre e sempre, alheia às dificuldades reais do cidadão de Vila de Rei.
Reconhece V. Ex.ª, Sr. Ministro, no seu programa, a necessidade da celeridade das acções. Que medidas foram já tomadas?
Queremos uma justiça mais célere, no entanto não podemos deixar de dizer que a celeridade da justiça terá de ser obtida através da implementação das regras que visem a colaboração do cidadão na aplicação da justiça, co-responsabilizando-o nela, mas nunca através da diminuição das garantias que em processo têm de ser dadas aos cidadãos para se fazer justiça!