14 DE NOVEMBRO DE 1990 313
económica, pode ele enfrentar o futuro, repensar a história e projectar no presente o seu longo passado cultural.
A Universidade participa integralmente desse passado.
Memória de um povo, a nossa velha Universidade participou da sua própria história, dos seus actos mais significativos, da ansiedade e coragem dos momentos difíceis, da conturbada agitação dos momentos de crise, da plenitude dos momentos de glória.
Com a força do seu pensamento, fornalha de novas ideias e conceitos, lugar de interrogações, de dúvidas, de procura, a Universidade preparou, com a ciência e ponderação dos seus mestres e com a sempre renovada e inquieta juventude dos seus discípulos, a mentalidade que havia de presidir às grandes manifestações do pensamento europeu e português.
Como escreveu Stephen d'Irsay: «Nas universidades encontrou o espírito humano, sempre impaciente por se dar, um meio admirável de expressão e de propagação. Assim, a sua história é, em grande parte, a história do pensamento contemporâneo.»
Ao longo dos séculos a Universidade soube impor-se, resistir às críticas, às violências, às insatisfações, às tiranias, aos mais vivos confrontos ideológicos e chegou até nós plena de maturidade e experiência, sobreposta a todas as querelas, independente e aberta à plenitude de ideias e opiniões, fecundo oásis onde o saber se aprofunda, o passado se engrandece e o futuro se prepara na certeza de que os seus grandes desafios serão vencidos.
A Universidade é bem a expressão mais elevada e mais rica da capacidade de criação europeia - a Europa criou-a como símbolo imortal do seu espírito, como verdadeira e perene materialização do seu génio. Para utilizar a construção de Toynbee, poderia dizer-lhes que, na «árvore da história» europeia, a Universidade constitui uma das suas mais frondosas e fecundas ramadas. Elemento estruturante do seu próprio carácter, a Europa engendrou-a para proteger, capitalizar e expandir o seu riquíssimo legado espiritual: o humanismo, a cultura e a ciência.
Scientiae thesaurus mirabilis, assim lhe chamava o documento precioso da fundação da nossa primeira Universidade.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Reitores: A instituição bebeu nas suas raízes a seiva da independência que sempre a norteou. As velhas universidades medievais, autónomas e livres, independentes de toda a tutela, assumiram os seus ideais e o seu destino por opção e iniciativa próprias. Algumas são de fundação ex consuetudine, sem outra iniciativa que não seja uma tradição escolar, por vezes longínqua.
Nenhuma se encontra na dependência de qualquer poder - o espírito autonômico e universalista fez da Universidade Medieval, como exprime uma frase redita, mas sempre com sentido, só maior monumento que essa mesma Idade Média nos legou».
A liberdade inicial, orgulho e prestígio da instituição, vai, contudo, perdendo contornos, permeável às vicissitudes dos tempos, ao embate do fluir ideológico e dos vários interesses do poder político.
A reforma pombalina, recheada, embora, de aspectos positivos, agrava-lhe, entre nós, a já acentuada falta de autonomia, privando-a da sua última manifestação de liberdade - a liberdade pedagógica. O Estado passa, então, a organizar totalmente o ensino - currículos, horários, métodos, programas, e ale lhe impõe as doutrinas permitidas e as não permitidas.
O liberalismo, ao contrário do que se poderia esperar, não restitui à nossa Universidade as velhas prerrogativas e o antigo sonho de auto-governo vai ter de aguardar largo tempo à espera de concretização.
É a I República que, em 1911, retoma práticas passadas, considerando, nos termos da lei então aprovada, que só as universidades são competentes para governar o respectivo ensino, que deve assentar, fundamentalmente, no princípio da liberdade de ensinar e aprender».
Seria, porém, ténue este retorno à autonomia. O estatuto de instrução universitária de 1930 de novo subjuga a instituição, passando o seu reitor a ser da confiança do governo e por este nomeado. Pouco mais tarde, em 1936, a participação activa dos estudantes na gestão universitária é suprimida.
O genuíno espírito medieval, de integração plena das forças componentes - professores e alunos -, esvai-se no empobrecimento resultante da dominação ideológica, no truncar da mais fecunda realidade universitária: a coabitação de várias gerações que se confrontam e estimulam, originando o progresso e a renovação.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Reitores: A Lei n.º 108/88 (Lei da Autonomia), restituiu à nossa Universidade a sua plena liberdade. E é este o lugar apropriado para referi-lo: foi esta Assembleia responsável pela aprovação, por unanimidade, desse histórico diploma. Cabe, por isso, felicitá-la pelo trabalho produzido e pelo enorme alcance desse mesmo trabalho na dignificação e engrandecimento da instituição.
A autonomia constitui, no dizer de um eminente jurista e reitor português, um conceito jurídico que «exprime o modo de ser ou natureza de um ente público perante o Estado em que se integra».
Face a tal conceito, a autonomia que a Constituição e a lei ordinária conferem à Universidade é uma autonomia sui generis: atribui à própria instituição o poder de se definir a si própria, isto é, a plena autonomia estatutária, e, não sendo essa autonomia organizada contra o poder ou poderes constituídos, é plena afirmação da vontade, da maturidade e da vitalidade dessa mesma instituição.
A Lei da Autonomia concede-lhe, assim, um amplo quadro de referências, sequentemente instituídas em concreto pela aprovação e homologação dos estatutos de cada instituição universitária.
A autonomia constitui, neste quadro, a chave da própria diversidade institucional que, nas diferentes formas de organização e nos modelos estatuários distintos, espelha afinal o mosaico cultural português, a consciência crescente do valor da diferença, o respeito pela singularidade.
A autonomia representa, pois, a própria garantia de emergência de instituições universitárias individualizadas, comunidades educativas fortes, assumidas na sua originalidade, pertença e produto autênticos das sociedades em que se inserem.
Liberta para se autodeterminar e definir, fortalecida face aos tradicionais poderes tutelares, a Universidade tem de encarar com serenidade as responsabilidades que lhe cabem, decidir dos seus objectivos e estratégias, assumir os aspectos fáceis e difíceis das decisões que lhe competem, consciente de que autonomia implica acréscimo de direitos e deveres e obriga a respeitar e a estimular os laços de solidariedade social e institucional.
Autonomia que, ao invés de ser motivo de isolacionismo, barreira oposta à fecunda interdependência institucional, tem de ser, antes, oportunidade de uma acrescida