322 I SÉRIE-NÚMERO 12
dade é que cada vez menos somos senhores da informação que mais essencialmente nos diz respeito. Há, neste domínio, um combate a travar, um torpor a sacudir, um debate urgente a trazer à Assembleia da República.
Nenhum de nós ignora que a explosão tecnológica permite hoje mil novas formas de ingerência visual e auditiva, psíquica e física, mecânica, electrónica e informática, ou todas estas coisas juntas. Mas nos tempos que correm importa nunca esquecer que, por 40 marcos, qualquer um pode obter pelo correio um catálogo como este, que terei todo o gosto em mostrar aos Srs. Deputados, em que estão previstos e vendidos dispositivos através dos quais é possível ouvir através das paredes, ver, ouvir e filmar a longa distância e gravar sem detecção. Tudo isto são versões populares, que só pecam por imperfeitas, em comparação com o equipamento mais sofisticado consumido pelos modernos profissionais da devassa, cuja detenção é entre nós inteiramente livre. Todos estes equipamentos podem ser detidos por qualquer um de nós, o que não podem é ser usados. Evidentemente, é difícil provar esse uso.
Ironicamente, o nosso primeiro problema talvez decorra da excelência do quadro constitucional. Em 1976, a lei fundamental consagrou o direito universal à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1), estabeleceu garantias contra a utilização abusiva da informática (artigo 35.º) e desejou invioláveis a correspondência, o domicílio (artigo 34.º) e a própria consciência (artigo 32.º, n.º 6). A revisão constitucional de 1989, ao impor a transparência como regra de vida da Administração Pública, não se esqueceu de impedir o acesso a informações susceptíveis de perturbar a intimidade das pessoas (artigo 268.º, n.º 2).
Estas normas trouxeram até nós, sinteticamente e quase de uma assentada, o legado riquíssimo de uma longa evolução constitucional que foi da proclamação individualista da privacidade como o direito a não ser incomodado pelo Estado, the right to be left alone, à sua moderna leitura como direito ao controlo activo e à autodeterminação das informações que dizem respeito a cada um de nós.
A queda do muro de Berlim veio apenas confirmar que a transparência e a privacidade fazem parte de um mesmo paradigma de valor universal, a Leste e a Oeste, superando as concepções que viam na protecção da esfera pessoal um resquício de matriz burguesa a eliminar por um mergulho de publicização total da vida de cada um.
Em Portugal, felizmente, o largo consenso constitucional de 1976 teve o enorme mérito de antecipar esta moderna valorização da intimidade pessoal. Isso poupou-nos os dilacerantes debates que dividiram a opinião pública em países como os Estados Unidas, a Itália, a França e a Grã-Bretanha e levaram a lentas e tortuosas inovações da jurisprudência e da lei, sem explícito assento constitucional. Mas talvez tenha ajudado a criar o mito de que a privacidade não constituía problema em Portugal. Sucede que constitui, Srs. Deputados.
De facto, falta-nos quase em absoluto uma cultura da privacidade similar à reinante, por exemplo, nos Estados Unidos - basta atentar na forma inteiramente insensível como são lançados à execração pública os nomes de vítimas de crimes - e o quadro legal é lacunoso e muito frágil.
O Código Civil proclama uma protecção que a lei de processo não assegura devidamente, pois faltam medidas cautelares específicas, existentes, por exemplo, no Direito anglo-saxónico, e as indemnizações por violação da privacidade são raríssimas.
A lei penal prevê a punição, na prática inexistente, de várias formas de intromissão na vida privada (v. g. artigos 178.º a 183.º), mas as prescrições são incompletas, desactualizadas e, como assinala Maia Gonçalves, chegam a omitir normas de protecção que já constaram da Lei n.º 3/73, de 5 de Abril, produzida pela Assembleia Nacional marcelista. Suscitam-se dúvidas sobre se essa lei, a Lei n.º 3/73, estará em vigor, como inculca, por exemplo, o conhecido Dicionário Jurídico, da Dr.ª Ana Prata, ou se foi revogada, como sagazmente não esclarecem Gomes Canotilho e Vital Moreira na correspondente anotação constitucional.
Em contrapartida, não há dúvida alguma de que temos lei de protecção de dados façe à informática. A Lei n.º 10/91 tardou 15 anos, mas acabou por ser aqui aprovada por largo consenso, sob proposta do Grupo Parlamentar do PS. Deixou, porém, ern aberto várias melindrosas questões e, sobretudo, Srs. Deputados, não está em aplicação. Deveria ter sido regulamentada pelo Governo até Abril de 1992, mas não foi.
Em consequência, está bloqueda a eleição de uma comissão nacional de protecção de dados pessoais informatizados e nenhum, mas nenhum, dos mecanismos de acesso à informação previstos na lei pode ser usado pelos cidadãos, o que é absolutamente lamentável. Pior ainda, a proliferação de bancos de dados na Administração Pública continua a fazer-se por mera decisão governamental, sem parecer da referida comissão, que tem também competência exclusiva para autorizar interconexões e ainda vastos poderes para combater a utilização abusiva de computadores e garantir direitos como o de rectificação de informações computorizadas erróneas ou inexactas.
Significa isto, Srs. Deputados, que em Portugal continua a reinar a lei da selva informática, num quadro de expansão exponencial, e positiva, aliás, do uso de computadores no sector público e privado. Só o Centro de Identificação Civil tem quase 11 milhões de registos, o registo criminal deve estabilizar em 400 000 cadastros, a base de dados de pessoas a procurar pelas polícias excede 200 000 fichas e o registo automóvel tem mais de 1,6 milhões, para não falar dos milhões de registos do fisco, dos serviços de saúde, da segurança social, das forças armadas, das universidades, dos institutos públicos, etc.
Os ficheiros das polícias e dos serviços de informações, aos quais têm acesso directo centenas de utentes, são um continente tão invisível quanto vasto e deficientemente controlado, como o reconheceu no seu relatório o Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações, além de talvez poderem incluir dados sobre actividades políticas, sindicais e estudantis, o que, a confirmar-se, seria inteiramente inaceitável.
O sistema de informações Schengen (SIS), em constituição, acarretará em breve um significativo agravamento quantitativo e qualitativo desta situação.
A tudo isto haverá que somar os bancos de dados privados ern que todos nós, potencialmente, podemos figurar na nossa qualidade de consumidores, devedores, activistas associativos e outras variadas qualidades, reflectindo a nossa identidade, as nossas graças e desgraças financeiras, opiniões e gostos pessoais. Talvez alguns de nós se inquietem muito com a vulnerabilidade decorrente do que pode saber-se sobre os números da nossa vida, mas não deve ter-se por pouco relevante o acesso incontrolado à ficha dos vídeos que alugamos no clube no nosso bairro, pois como a experiência norte-americana da eleição de juízes do Tribunal Supremo revelou, isso pode ser extre-