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I SÉRIE - NÚMERO 35
A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vem-se acentuando ultimamente um clima de divergência, e mesmo de confronto, em tomo da situação da justiça em Portugal. O responsável governamental por esta área, o Sr. Ministro da Justiça, não se cansa de acentuar, nas suas várias intervenções públicas, as pinceladas cor-rosa de um quadro retocado com inépcia e que, por isso mesmo, não esconde os sinais de degradação.
O Sr. Ministro ostenta tranquilidade e garante que os Portugueses têm razão para estar sossegados quanto ao estado da justiça, mas a este discurso, que demagogicamente se reivindica de modernidade, respondem os profissionais do foro com críticas justas e avisos sobre uma crise que nunca deixou de existir e com a denúncia dos bloqueios que condicionam a administração da justiça em nome do povo.
E o povo, o verdadeiro protagonista daquela administração, sente diariamente que a justiça vai mal. Sente-o, em primeiro lugar, quando constata a morosidade do aparelho judicial. Ele não se revê nas estatísticas oficiais cozinhadas num grande caldeirão em que se remexem em conjunto vários processos, para dos mesmos se tirar uma duração média de cada processo que é enganadora.
O cidadão comum sabe que a justiça portuguesa é morosa e por isso mesmo ineficaz em muitos casos. E comenta: «Irrita-me andar pelos tribunais.» E desiste em muitos casos. Abdica, sempre que tal não se afigura essencial, da efectivação dos seus direitos. O cidadão sabe que a justiça portuguesa é insuportavelmente cara e que o seu preço - uma verdadeira taxa altamente moderadora de um direito constitucionalmente consagrado, o acesso ao direito e aos tribunais - lhe franqueia apenas meia porta daqueles.
O cidadão sente quotidianamente que aquele direito não lhe é garantido; que não é efectivado ao cidadão de mais fracos recursos o direito à informação e consulta jurídica gratuitas; que o patrocínio judiciário gratuito não é suficientemente garantido; que as garantias de defesa em processo criminal não estão devidamente asseguradas com o sistema de defesa oficiosa tal como se realiza na prática; sabe que esse sistema não corresponde às mais elementares exigências de defesa dos direitos do homem! E porque sente tudo isto, o cidadão que tem de franquear as portas dos tribunais nas mais diversas qualidades não pode impedir um desabafo: «E é isto a justiça?!»
A esta inquietação do cidadão comum proeurou responder a Conferência Nacional sobre o Estado da Justiça em Portugal realizada neste último fim-de-semana por iniciativa da Associação Sindical dos Magistrados Judiciais, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e da Ordem dos Advogados. Três dias de debate puseram a claro os vários bloqueios que se opõem à administração da justiça e advertiram para um crescendo da crise, crescendo que, como ficou demonstrado nessa conferência, era inevitável face à crise social que se vai agravando na sociedade portuguesa; puseram a claro os bloqueios onde avultam, desde logo, a situação das magistraturas e da advocacia.
Pode afirmar-se que com os governos do PSD se ensejaram algumas soluções que punham em causa a independência dos tribunais. A criação do tribunal de círculo com a figura do seu presidente gizada para colocar na sua dependência outros magistrados. A sonhada nomeação através de comissão de serviço renovável, se bons serviços fossem prestados, dos juízes dos tribunais de círculo, seria uma machadada na independência do poder judicial, e, consequentemente, na soberania popular que através dos tribunais fiscaliza o cumprimento de legalidade democrática.
Foi possível, no entanto, fazer recuar o poder executivo, mas anunciam-se novas alterações - creio que deram hoje entrada na Mesa - ao Estatuto dos Magistrados Judiciais através das quais se procura ressuscitar interesses corporativos, a divisão de juízes em castas, como se no Conselho Superior da Magistratura, de facto um órgão de Estado, não estivessem apenas em causa os interesses da justiça!
No referendo realizado pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais, sobre esta questão, aqueles, por larga maioria, e apesar da análise feita pelo Sr. Ministro que cheira a épocas passadas, manifestaram-se contra a proposta do Governo assumida pelo Sr. Ministro da Justiça. Mas ao que parece o Governo também não quer ouvir os juízes. Assim como não ouviu, nem parece querer ouvir, os magistrados do Ministério Público.
Ao longo dos anos de governação PSD, desencadeou-se uma verdadeira ofensiva contra a autonomia do Ministério Público, ofensiva essa que só aparentemente se centrava sobre um estatuto de classe. Em causa tem estado, de facto, o estatuto de um órgão de justiça que tem por função agir em defesa da legalidade democrática, sobretudo quando tal legalidade é violada pelo poder executivo.
Assim, quando se ofende a autonomia do Ministério Público estão em causa o próprio Estado de direito democrático e a soberania popular. Foi possível salvaguardar, no fundamental, aquela autonomia, mas não sem atropelos e sem custos na própria efectivação do Estado de direito democrático.
De facto, o Ministério Público foi amputado de importantes competências quando se lhe retirou o poder de fiscalização, por sua iniciativa, dos restantes órgãos de polícia criminal na sua actuação pré-processual. E houve mesmo uma estranha, estranhíssima, coincidência entre essa amputação e uma anterior actuação inspectiva do Sr. Procurador-Geral da República... e uma não menos estranhíssima coincidência entre esta actuação inspectiva e as tentativas de introduzir alterações no mandato do procurador-geral.
E o que o Governo conseguiu, de facto, foi uma certa policialização da investigação criminal, à margem do Ministério Público, com tudo o que isso representa de negativo para os direitos, liberdades e garantias do cidadão! Parece mesmo que o Governo se prepara, segundo consta, para desbravar novos caminhos nessa policialização em áreas sensíveis como a da corrupção, que mina o regime democrático. O vezo dessa policialização foi já longe de mais.
É o que se está a passar, nomeadamente, com os brasileiros impedidos de entrar em Portugal ou em perigo de serem expulsos. Alvos de suspeição, interrogados nas fronteiras, expulsos de um país irmão, eles também se interrogam sobre as suas garantias de defesa, sobre o estado da justiça em Portugal. Também se interrogam, legitimamente, sobre os motivos que levam Portugal a desrespeitar a Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugal e o Brasil, que tem a data de 1971!
E o povo português, o povo que se revê nas palavras de Jorge de Sena citadas a propósito pelo primeiro presidente da Comissão Parlamentar Luso-Brasileira, Dr. José Carlos de Vasconcelos: «Eu era brasileiro de oito séculos por ser português de outros tantos [...]», o povo que se