19 DE FEVEREIRO DE 1993 1471
No que respeita a Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenada, a influencia é transparente. Aceita que a submissão do delinquente ao Estado que o condena, ou seja, a extenção da pena pelos seus tribunais pode ceder, a pedido deste e havendo acordo com outra entidade soberana, em nome de vantagens de reinserção social.
A valorização da reinserção social (já hoje, aqui, várias vezes trazida à colação) justifica-se plenamente. Mas se é vontade que a ideia de um direito penal preventivo da delinquência, voltado para a segurança e para a ressocialização, seduz tanto pela sobriedade como pelos propósitos construtivos que manifesta, não é menos certo que essa ideia tem limites. A reinserção não é um fim em si mesma. Não o é, porque o condenado tem o direito de a não querer, ou seja, de manifestar a sua atitude intelectual de rejeição do direito, mesmo no decurso do cumprimento da pena. Mas a reinserção não é um fim, principalmente, porque lhe inere uma legitimidade democrática e um juízo favorável sobre as condições para a levar a efeito. E jamais será possível acabar com a criminalidade, da mesma sorte que a vida humana não é isenta de erro ou de tragédia.
No entanto, pesem todas estas limitações, o princípio vertido na Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, segundo o qual a reinserção pode atravessar fronteiras, e deve atravessá-las, desde que o vaivém se estabeleça entre democracias, contribui para influenciar positivamente os Estados do nosso tempo. Pode ler um efeito impulsionador da comunicação entre culturas jurídicas - isto é da maior importância. Em primeiro lugar, porque não é impunemente que o direito penal actua no plano internacional. Ele é essencial na construção do universo jurídico e na expressão das causas que podem unir as sociedades e os povos. Exprime e assegura os valores fundamentais da convivência entre as pessoas - tem presentes, portanto, as grandes linhas do universo cultural e reflecte com enorme rigor a ideia que se tem do humano e das finalidades da vida política. E, ao definir o mais elementar para a sobrevivência social, sublinha os denominadores comuns entre os Estados, assim como ajuda a percepcionar o que de essencial os divide e só assim se poderão estabelecer laços e pontes.
Num plano de dramática actualidade, mostram-no bem os recentes apelos oriundos de várias instâncias para uma internacionalização do crime de violação, para que seja considerado crime de guerra. Tem sido os acontecimentos últimos na Bósnia, sobre os quais a Assembleia da República já hoje se pronunciou a suscitá-lo.
Por outra banda, a percepção da tensão entre o direito constituído, a adequação à realidade, nacional e a experiências e direitos outros, estarão presentes nos trabalhos de preparação das propostas de alteração ao Código Penal português, que, de acordo com informação tio Ministério da Justiça, a Câmara apreciará em tempo não muito distante.
Sr. Presidente, Srs. Secretários de Estado, Srs. Deputados: A Comunidade Europeia atribuiu sempre enorme importância à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e às demais convenções internacionais que ela inspirou. Foi essa apetência de envolvimento com os seus princípios que marcou a importante discussão ocorrida a parar do início da década de 80 sobre apropria adesão comunitária à Convenção. E disse-se, em seu favor, que ela sublinharia a «personalidade» dá Comunidade, que lhe permitiria invocar a experiência progressista do Tribunal dos Direitos do Homem, que contribuiria para o estabelecimento de afinidades sócio-culturais no espaço europeu.
Nada de mais premonitório acerca do tema hodierno da cidadania europeia. De facto, de o Tratado da União Europeia aver, como esperamos, real significado constituinte, ele dependerá de um salto qualitativo: a sedimentação de uma espécie de contrato social europeu estreitamente ligado ao aparecimento de um código de direitos fundamentais, independentemente da natureza e expressão que este venha a revestir;
Sr. Presidente Srs. Deputados: O optimismo e a esperança que, de alguma forma, convocamos no momento da aceitação de novas formas de protecção dos direitos não podem esconder advertências nem silenciar cautelas. O iceberg mundial não é ainda dos direitos do homem; está contra ele um pouco por toda a parte e, mesmo onde existe, parece enxameado de dificuldades que ainda não sabem ultrapassar. Os direitos fundamentais não podem ser uma categoria nominalista. Como e com que legitimidade impor o nosso padrão racional, ocidental, às fronteiras que se lhes querem abrir?
Quando o Secretário-Geral da OUA reuniu juristas africanos em Dakar, em finais dos anos 70, para elaborar o anteprojecto de uma Carta Africana de Direitos, ressaltou a diversidade de concepções. Interrogava-se, então: direitos das pessoas ou direitos dos povos? Os tempos de hoje não nos encaminham para na rejeição liminar da alternativa aos nossos direitos das pessoas ainda que em nome de princípios que são sagrados para nós e património jurídico e cultural do Ocidente, porque esse caminho da rejeição liminar é o caminho da insensibilidade e também da intolerância e elas são ambas armas poderosas, usáveis por quem - não poucos - pretendem acusar-nos do manejo dos direitos humanos como instrumento de propaganda do Ocidente.
Lembro aqui, na Câmara, um livro recentemente aparecido nas bancas, de Chomsky, que justamente desconstrói o Estado democrático, fazendo a invectiva contra os direitos humanos de uma forma terrível, adjectivando-os de instrumentos de propaganda!
Para que o direito continue nas palavras do salmo, sendo o direito, é preciso, introduzir aqui um esforço de diálogo, uma atitude de solidariedade, obviamente bem abdicar das nossas convicções neste domínio.
Num spot publicitário da campanha de 1984 de Ronald Reagan dizia-se;«Há um urso na floresta. Alguns distinguem-no bem, outros de todo. Alguns afirmam que o urso está preso, outros que está à solta e que é perigoso. Como ninguém pode dizer quem tem razão, seria sensato ser pelo menos tão forte quanto o urso - se é que ele existe.» O «urso» nebuloso soviético desapareceu. Emergem novas democracias, que não tem seguramente uma face unívoca. Quais são, hoje, em bom rigor, os países democráticos do nosso ponto de vista?
Continuamos, apesar disso, a colaborar na liturgia da disseminação dos tratados internacionais sobre os direitos do homem.
Aceitamo-lo porque acreditamos em duas coisas: que é preferível em qualquer circunstância, porque corresponde à nossa causa; e que assim contribuiremos para cooperar na redefinição do universo da democracia.
E, muito provavelmente, fazemos a escolha certa.
(A oradora reviu.)
Aplausos do PSD.
O Sr. Presidente: - Para ama intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.