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2364 I SÉRIE - NÚMERO 73

nerosas e da boa-fé dos participantes, estamos perante um jogo cruel.

A realidade desmente a fachada solidária. O Norte não ajuda o Sul. A ajuda é ficcional e os governantes das grandes potências industrializadas estão cientes disso, embora não assumam a evidência. A hipocrisia faz parte do discurso oficial da cooperação Norte-Sul. No diálogo está ausente, do lado dos poderosos, a vontade real de colocar os problemas com clareza e de, passando das promessas à acção, procurar soluções que diminuam o abismo que separa os países ricos dos pobres.
O desnível atinge proporções alarmantes. Menos de um quinto da humanidade consome ou controla mais de quatro quintos dos recursos do planeta.
Cito alguns números retirados de documentos das Nações Unidas: 1/4 da população mundial vive na miséria absoluta; entre 13 e 18 milhões de pessoas morrem anualmente de fome ou de doenças ligadas à pobreza; 40 000 crianças morrem diariamente por causas inseparáveis do subdesenvolvimento; os 20% mais pobres da humanidade têm um rendimento 150 vezes inferior ao dos 20 % mais ricos; 1/3 da população mundial não tem acesso a qualquer serviço básico de saúde; no mundo há 157 pessoas com fortunas superiores a 1000 milhões de dólares e 1100 milhões de pessoas com rendimento inferior a um dólar; em muitos países o número absoluto de empregos caiu, não obstante a população ter aumentado.
A ajuda bilateral dos países do Grupo dos Sete é distribuída de acordo com critérios estratégicos. Um exemplo: mais de metade da ajuda bilateral americana foi concedida apenas a cinco países: Israel, Egipto, Turquia, Filipinas e El Salvador. As consequências dessa disparidade são chocantes. O Bangladesh, com mais de 100 milhões de habitantes, recebe, sob a forma de ajuda, um total inferior ao de El Salvador, que tem menos de 5 milhões de habitantes. Ao Egipto cabem 370 dólares por cada pobre, enquanto a índia recebe apenas 4 dólares.
Os esforços para desenvolver a agricultura e a pecuária em países do grupo não desenvolvido são muitas vezes neutralizados pelas contradições das políticas das potências que financiam esses programas. Um exemplo: a obrigatoriedade da compra dos excedentes norte-americanos tem arruinado os agricultores de países africanos e asiáticos cujos governos adquirem por baixo preço cereais aos EUA.
A chamada ajuda militar é outro cancro que nasce da falsa solidariedade. Mais de 22 milhões de pessoas morreram no Terceiro Mundo desde a II Guerra Mundial, em 120 conflitos ditos de baixa intensidade que foram, directa ou indirectamente, estimulados por grandes potências que armaram os seus exércitos.
Na Somália, o custo da parte militar da operação dita «Restaurar a Esperança» foi, somente na fase inicial, superior a 2000 milhões de dólares, ou seja, mais do que foi investido pelos países da OCDE (com excepção da Itália) no desenvolvimento do país nos últimos 40 anos.
Situações como as acima citadas são esclarecedoras da natureza farisaica, por vezes perversa, daquilo a que se pode chamar a falsa ajuda de países ricos do Norte a países pobres do Sul.
O Norte industrializado continua a vender aos povos do Sul não desenvolvido, por preços cada vez mais elevados, os seus produtos, enquanto compra o que eles
exportam por preços cada vez mais baixos. E quem fixa os preços é sempre o Norte.
Á outra chaga do subdesenvolvimento é a dívida externa. Durante a década de 80, por exemplo, a América Latina (sobretudo o Brasil, o México e a Argentina) foi exportadora líquida de capitais. Para pagarem o serviço da dívida os três grandes latino-americanos geravam excedentes enormes nas suas balanças comerciais, reduzindo o consumo interno. O povo apertava o cinto, alimentava-se e vestia-se cada vez pior, estudava menos, tinha pior saúde, para que os bancos credores recebessem dezenas de milhares de milhões de dólares. Contudo, a dívida desses países continuou a crescer ou permaneceu estacionária.
Conjugados, o intercâmbio desigual e a dívida externa constituem uma engrenagem trituradora das economias dos países não desenvolvidos.
Na prática, a ajuda do Norte ao Sul não existe porque o seu total, em valor absoluto, é inferior ao montante dos capitais que o Sul perde através dos mecanismos da dívida e da desigualdade comercial. Não há por isso exagero na afirmação de que, afinal, o Sul continua a financiar o Norte, os pobres continuam a enriquecer os ricos. A ajuda é apenas uma parcela enganadora que atenua a espoliação global de que o Sul não desenvolvido é vítima.
Srs. Deputados: Zbigniew Brzezinski, ex-assessor do Presidente Cárter, recorda no seu último livro que «a desigualdade entre ricos e pobres, entre os que têm e os que não têm, se está a transformar minuto a minuto em situação insuportável, resvalando para desejos frustrados que encontram maior satisfação emocional na etnicidade e na irracionalidade para as quais uma nova forma de fascismo poderia ser uma boa resposta».
Nos EUA, a potência mais rica e poderosa da Terra, o egoísmo aumenta num ritmo inquietante. A defesa do leader ship e dos chamados interesses vitais da sociedade serve para sustentar posições perigosamente amorais. O Professor Anthony Lake, assessor do Presidente Clinton para as questões da segurança nacional e um dos homens mais poderosos da Casa Branca, numa conferência pronunciada na Universidade John Hopkins, fez a afirmativa que passo a citar: «Os nossos interesses não nos obrigam apenas a compromissos, mas também a dirigir. Devemos promover a democracia e a economia de mercado no mundo porque isso garante os nossos interesses e a nossa segurança (...). Um só factor- sublinhou- deve determinar a natureza multilateral ou unilateral da acção dos EUA: os interesses da América. Devemos agir no plano multilateral quando isso sirva os nossos interesses, e devemos actuar unilateralmente sempre que isso corresponda ao nosso desígnio».
Qualquer comentário seria supérfluo.
Srs. Deputados: A Cimeira de Viena deu ênfase à questão dos Direitos do Homem. Mas ela foi tratada como se o tema se esgotasse no debate sobre as liberdades individuais e a liberdade de expressão e da circulação de pessoas. Foi praticamente esquecida a luta por outras liberdades sem as quais a vida humana perde significado e dignidade. Quase não se falou do acesso aos meios económicos e sociais que permitem a fruição das outras liberdades. Viena esqueceu o direito à habitação, ao trabalho, à educação, à saúde e à segurança, aos direitos que a maioria da humanidade, sobretudo no Sul, pobre e explorado, não pode exercer.