12 DE MARÇO DE 1998 1595
As alterações propostas levam em linha de conta a evolução da psiquiatria, por um lado, e, por outro, um conjunto de princípios de natureza jurídica que gozam de consenso no plano nacional e internacional. No que diz respeito à evolução da psiquiatria, esteve sempre presente a sua maior capacidade de intervenção, nomeadamente a nível terapêutico, que permite quer evitar o internamento, quer modalidades mais simples e menos prolongadas de tratamento.
Quanto aos princípios jurídicos que enformam esta proposta, de matriz constitucional, são eles também os formulados em órgãos internacionais, nomeadamente do Conselho da Europa ou das Nações Unidas.
Seguindo as recomendações desta organização e também da Organização Mundial de Saúde relativamente à necessidade de evitar a segregação das pessoas afectadas por doença mental e de facilitar a sua reabilitação e reinserção social, incluem-se, entre os princípios gerais de política de saúde mental, a promoção prioritária da prestação de cuidados de saúde mental a nível da comunidade, a prestação destes cuidados no meio menos restritivo possível e o tratamento de doentes mentais em regime de internamento tendencialmente em hospitais gerais. Idêntica fundamentação preside à inclusão da directriz que estabelece a prestação de cuidados a doentes que careçam de reabilitação psicossocial, preferencialmente em centros de dia e em estruturas residenciais inseridas na comunidade e adaptadas ao grau específico de autonomia dos doentes.
De acordo com os princípios constitucionais que fundamentam e estruturam a proposta de lei, consagra-se, em primeira linha e imanente a todo o diploma, o princípio da plenitude dos direitos fundamentais. O que significa que, indo ao encontro do artigo 30.º, n.º 5, da Constituição, os portadores de anomalia psíquica mantêm a titularidade daqueles direitos, salvas as limitações inerentes à efectividade do tratamento e à segurança e normalidade do funcionamento do estabelecimento.
Em consequência deste princípio informador, exprimem-se, desde logo, alguns desses direitos fundamentais, quer o portador seja internando ou internado. Assim, ao nível dos direitos e deveres dos doentes mentais, leva-se em conta o já estabelecido na Lei de Bases da Saúde, que define o estatuto dos utentes do Sistema de Saúde.
Porém, a natureza específica das doenças mentais, as suas repercussões a nível das capacidades de autodeterminação de quem as sofre, bem como as implicações particulares dos tratamentos psiquiátricos, obrigam a que outros direitos e deveres sejam assegurados aos doentes mentais para além dos já considerados naquela lei.
Consagra-se, assim, o direito dos utentes do serviço de saúde mental a serem informados, de uma forma adequada, dos direitos que lhes assistem, bem como dos planos terapêuticos que lhes são propostos. Reconhece-se o direito a receberem tratamento e protecção é o direito à decisão de receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas prescritas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros.
Relativamente a esta última questão, a proposta de lei estabelece, como norma, o consentimento prévio e informado do doente, ou do seu representante legal, em caso de menores ou dos que não possuam o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento.
A vulnerabilidade particular dos utentes dos serviços de saúde mental a situações que possam comprometer a dignidade da pessoa humana justifica, tal como é também recomendado pelos organismos internacionais, uma consagração expressa de outros direitos, que são igualmente contemplados. É o caso do direito a aceitar ou recusar a participação em investigações, ensaios clínicos ou actividades de formação; do direito a usufruir de condições dignas de vida e privacidade em serviços de internamento e estruturas residenciais; do direito a comunicar com o exterior e a receber visitas e do direito a receber justa remuneração pelas actividades ou serviços prestados.
Finalmente, com base na dificuldade de autodeterminação frequentemente sentida pelas pessoas afectadas de doença mental, estabelece-se o direito destas a receber apoio no exercício dos direitos de reclamação e queixa atribuídos pela Lei de Bases da Saúde aos utentes dos serviços de saúde, assegurando-se, assim, a superação dos actuais constrangimentos legais a uma autonomização progressiva de um número muito significativo de doentes institucionalizados em serviços psiquiátricos.
O significado do expresso reconhecimento dos direitos fundamentais e da sua expressão na lei afigura-se de especial relevância, porquanto importa afirmar claramente que o portador da anomalia psíquica não seja tomado com capitis diminutio, ipso facto, em zonas da sua cidadania que devem, pelo contrário, ser protegidas pelo Estado.
O regime relativo ao internamento compulsivo - compulsivo apenas porque não é efectuado a pedido do doente, mas por decisão judicial, na impossibilidade de expressão daquele consentimento - pauta-se pelo princípio da proporcionalidade em sentido amplo, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição: a privação do direito à liberdade limita-se ao necessário para salvaguarda de bens jurídicos constitucionalmente protegidos.
Ao eleger-se como critério de intervenção o perigo para bens jurídicos, restringe-se necessariamente a possibilidade de internamento compulsivo, na medida em que ele apenas estará legitimado quando haja o perigo de lesão insuportável das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento de cada homem, excluindo-se, desta forma, em absoluto, internamentos com fundamento em perigo para valores morais, religiosos, políticos ou outros, o que não se coadunaria, obviamente, com um Estado de direito como o nosso.
O princípio da proporcionalidade comporta em si mesmo, no seu núcleo essencial, três vectores: em primeira linha, o princípio da necessidade - só há lugar a internamento compulsivo na falta de qualquer outra forma de efectivar o necessário tratamento, cessando logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa através da regra da revisão da situação do internado. Em segundo lugar, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito - o internamento só será legitimo quando houver perigo para bens jurídicos, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial de relevante valor, devendo ainda ser proporcionado ao grau de perigo existente no caso e ao bem jurídico em causa. Em terceiro lugar, o princípio da subsidiariedade - o internamento é substituído, sempre que possível, por tratamento em regime ambulatório, isto é, o internamento deve ser a ultima rabo, tal como decorre do disposto no artigo 30.º, n.º 2, da Constituição.
Para esta solução apontam também, decisivamente, os progressos terapêuticos verificados ao longo das últimas décadas, permitindo uma maior eficácia no tratamento e melhoria de prognóstico e potenciando a maior frequência do tratamento em regime ambulatório.